Folha de S. Paulo


Um encontro com o coronel Kurtz

Subi o rio Mekong do sul do Vietnã até o Camboja numa viagem de quatro dias em barcos de pesca pelo delta, dormindo em pequenas cidades como Can Tho, Cai Rang e Chau Doc, até embarcar numa lancha para Phnom Penh.

Durante esses dias comprei abacaxis em mercados flutuantes, visitei casas cujo chão guardava criações de peixes, bairros inteiros de palafitas sobre terra ou água, cantei "Aquarela do Brasil" na cabine de um karaokê onde as garçonetes vinham para o sofá com as cervejas, mastiguei uma semente com tabaco que me deu uma onda de anfetamina e dormi em pensões ouvindo o sapatear dos ratos sob a cama.

Foram dezenas de horas em afluentes de água marrom cercadas por palmeiras e mata verde, mas foi descendo no pequeno cais da capital do Camboja que senti meus pés vacilarem. Quando você fica dias viajando em barcos de diferentes tamanhos e finalmente atraca num porto, há uma espécie de enjoo retardado. Seu pés estão firmes no chão, mas a calçada vacila, os prédios parecem fora de prumo. A tontura chega em terra firme.

*

Quando fui trocar US$ 200 (R$ 522) na casa de câmbio, o funcionário me olhou assustado: "Tem certeza?". Saí com os bolsos entupidos por maços de notas velhas e sujas, 815.200 rieis cambojanos no câmbio de hoje. O homem se despediu de mim com um olhar cauteloso. Quando comecei a ver os preços no mercado, entendi que teria dificuldade em gastar todo aquele dinheiro nos próximos dias.

Andei pelas ruas com algum incômodo. Não por medo de assalto numa cidade relativamente tranquila para padrões brasileiros –o Camboja teve 6,5 assassinatos por 100 mil pessoas em 2012 e o Brasil, 25,2 no mesmo ano–, mas por uma sensação mais sutil e desagradável: eu senti que podia comprar qualquer coisa.

*

Talvez seja isso o que muitos turistas ocidentais procurem em Phnom Penh e outras cidades do sudeste asiático –esse calafrio de poder e corrupção. Não conhecer seus templos, palácios e monumentos, mas principalmente os bares onde mulheres negociam seus corpos. Há quarteirões cheios deles nas áreas turísticas da cidade. A clientela costuma ser europeia e norte-americana e as madrugadas vivem um feriado interminável.

"Heart of Darkness" (Coração das Trevas) é o romance de Joseph Conrad sobre a violência e a desumanização promovida pelo imperialismo no ex-Congo Belga que foi revisitado por Francis Ford Coppola no épico "Apocalipse Now", filmado durante a Guerra do Vietnã.

Nele, o coronel Kurtz de Marlon Brando é um militar alucinado que comanda tropas e escravos na selva cambojana onde é tratado como um semideus. É também o nome de uma boate (38 Street 51 Pasteur) com lanternas chinesas vermelhas, canhões de luz imprimindo pontos coloridos nas pernas das khmers e música ocidental.

Quando pedi um gim tônica no balcão, um homem veio falar comigo em inglês:

– Aqui é mais devagar. Você tem que ir no outro lado da rua.

– Pra quê?

– As meninas...

Continuou e disse que estava aqui há um mês. Tinha 50 anos, bronzeado e era careca. Não era um oficial condecorado do Exército, mas um sujeito que tinha feito dinheiro com start-ups de internet.

E não queria voltar para casa: "Nos Estados Unidos, com US$ 20 [R$ 52] eu compro um livro. Aqui eu durmo com uma garota linda. Se eu dormir com uma nova por dia, gasto 600. É uma pechincha. E ainda tem toda a heroína que você quiser. É barata e pura. Eu tenho o contato. Você pode ser deus aqui, cara".


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