Folha de S. Paulo


Viajar para o Brasil de Stefan Zweig

Num futuro próximo, não creio que será possível editar um livro como o das cartas de viagem pela América de Stefan Zweig e Lotte Zweig ("Stefan e Lotte Zweig: Cartas da América: Rio, Buenos Aires e Nova York, 1940-42", Versal Editores, 2012). Estou obcecado por ele, que leio agora em Viena, cidade onde Zweig nasceu, estudou e produziu até dela ser expulso pelo nazismo em 1934.

Naquela época, uma simples mensagem demorava semanas para chegar pelo correio ao outro lado do Atlântico. Em tempos de guerra, até meses -e esse atraso é um tema recorrente nas cartas, escritas em inglês, e não em alemão, para driblar o controle. Nada parecido com a onipresente e invisível conexão sob a qual vivemos em perpétuo estado de disponibilidade.

Nosso mundo hoje é menor, mas perdemos algum registro com a distância. O que as gavetas ou caixas de sapato antes guardavam será torrado por algum HD defeituoso ou ficará trancado por trás de uma senha após a nossa morte. Se subimos para a nuvem cada vez mais imagens de tudo o que nos cerca (o que é o meu Instagram senão um diário?), a literatura de viagem e o registro histórico da troca de cartas perde com a tecnologia.

Felizmente, escritores como Zweig ainda não usavam e-mail. Um dos autores mais consagrados, traduzidos e populares da primeira metade do século 20, ele era um apaixonado pelo Brasil. Sobre nosso país escreveu o célebre ensaio publicado em 1941 que nos condenaria ao futuro -para sempre, alguns dizem. Hoje releio "Brasil, um País do Futuro" e tenho vontade de viajar ao país que existe por trás dos olhos do romancista. Zweig parece encarnar um Policarpo Quaresma na insistência em não enxergar a violência que o Brasil cometeu e comete diariamente contra si mesmo.

Não são apenas as décadas que nos separam do texto, mas principalmente a idealização do Brasil e da sua suposta democracia racial em contraste com a desintegração europeia da qual tentava escapar. (Em 2014, ler a descrição do brasileiro típico por Zweig é comovente: "Falta neles toda brutalidade, violência e veemência, tudo o que é grosseiro, presunçoso e arrogante. O brasileiro é um indivíduo calmo, pensativo.")

Depois de uma peregrinação por Nova York, Buenos Aires e algumas idas e vindas ao Rio de Janeiro, Zweig e a mulher, Lotte, passaram seus últimos meses entre 1941 e 1942 em Petrópolis, na casa da rua Gonçalves Dias, 34 -e é curioso que seu último retiro longe da autoaniquilada Europa onde nasceu seja na rua batizada com o nome do autor da "Canção do Exílio", poema que compara a paisagem europeia com a terra que tem palmeiras onde canta o sabiá. De fato, Zweig começa sua carta de despedida agradecendo ao Brasil, "maravilhoso país que propiciou a mim e à minha obra tão boa e hospitaleira guarda".

A troca de cartas entre o casal Zweig e o irmão de Lotte e sua esposa, na Inglaterra, inclui descrições do Rio de Janeiro ("a cidade mais linda do mundo", "a beleza, a cor, a grandeza essa cidade é inimaginável", "tudo seria melhor aqui sem o calor do verão") e detalhes sobre a peregrinação em tempos de guerra.

É possível perceber a alienação crescente do casal e tentar preencher as elipses à medida que nos aproximamos do suicídio dos dois. A Casa Stefan Zweig (casastefanzweig.org) fica aberta em Petrópolis de sexta a domingo, das 11h às 17h. Para saber mais, leia "Stefan Zweig no País do Futuro - A Biografia de um Livro" (EMC/Biblioteca Nacional/Casa Stefan Zweig), de Alberto Dines, presidente da Casa Stefan Zweig.


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