Folha de S. Paulo


Banheiro, Freud e spa em Viena

O Kaffe Alt Wien (Bäckerstrasse 9, Viena) é um daqueles bares esfumaçados onde jovens com pretensões de arte entopem o ventre de cerveja até que sintam-se suficientemente originais entre paredes tomadas por pôsteres de teatro. Você já viu a cena.

O que chama mais a atenção nesse clássico vienense, sujo e escuro até de dia, não é o excelente goulash ou o chope gelado para padrões austríacos. O destaque do Alt Wien está nos fundos: seus banheiros. Por trás de portas velhas e carcomidas, os lavatórios são impecavelmente limpos, modernos, emulando um Philippe Starck genérico. É como entrar noutra dimensão ou viajar no tempo.

O W.C. tem portas de vidro transparente que ficam opacas quando fechadas, um sofá de couro preto, revestimentos de mármore, iluminação indireta, sensores de presença, máquinas de secar a mão, descargas e odorizadores automáticos.

Um requinte ridículo e absolutamente incompatível com o resto do bar. Aqueles banheiros transformam o estabelecimento numa espécie de besta mitológica desajeitada, como um elefante com patas de girafa.

Soltei minha bexiga em desenhos espirais na água do vaso pensando em Freud. A teoria psicanalítica que ele desenvolveu a algumas quadras daqui introduziu o conceito de subconsciente, parte oculta e submersa do iceberg da nossa mente –mais ou menos como o banheiro nos fundos desse bar. Só que menos limpo, claro.

O Museu Freud (Bergasse, 19), localizado no apartamento onde o pai da psicanálise viveu e trabalhou por 47 anos, é meio decepcionante. Mas, às vezes, o mundo é surpreendente, simbólico e maravilhoso. Exatamente do lado oposto da rua, numa linha reta a partir da porta do prédio de Freud, fica o Dhevari Spa, "o primeiro spa asiático de luxo de Viena".

O tratamento "dos pés a cabeça" custa € 109 (R$ 347) por 105 minutos de massagem e banhos. Há outras opções que incluem massagem tailandesa, óleos, pedras quentes, reflexologia chinesa nos pés, Shiro-Abhyanga indiana na cabeça e nos ombros, terapia japonesa a quatro mãos, banhos quentes etc. Tudo custa na média o preço de uma sessão de psicanálise, às vezes por até duas horas de terapia corporal.

A descontar os círculos mais intelectualizados e nobres de cidades evidentemente neuróticas como Buenos Aires, Paris ou Nova York, tendo a acreditar que o século 21 será da solução oriental. A não ser que a psicanálise substitua seus divãs por banheiras quentes, camas de massagens ou tapetes de ioga.

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Estou aqui com o escritor Cristovão Tezza, ambos convidados para a Quinta Semana Brasileira de Literatura, promovida pela Universidade de Viena e pela Embaixada do Brasil. Uma greve da TAP extraviou a bagagem do Tezza –não a intelectual, claro– e eu o trouxe para comprar roupas de emergência na H&M.

Uma mulher, provavelmente os cabelos louros contra o vento, canta uma melodia circular sobre os acordes de um tecladinho va- gabundo e uma batida acelerada de house-music comercial. O som da loja é alto, há um traço de his- teria cortando o ar, as luzes são muito brancas, e eu ajudo esse grande escritor a comprar cuecas e camisas limpas.

Depois sairemos pelo frio numa daquelas tardes sem sentido, meio angustiados e perdidos como duas crianças ou velhos peripatéticos a observar os resquícios do império.


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