Folha de S. Paulo


Sábado com a aristocracia haitiana

Valentina Fraiz

A perspectiva lateral de um Marco Polo imóvel numa limusine, em que as ruas lotadas de gente parecem mover-se ao redor do carro como numa esteira. Não estou na Procópia de Italo Calvino, mas em Porto Príncipe, onde a paisagem humana das ruas apinhadas não oferece "sorrisos tranquilos", como em "As Cidades Invisíveis" (1972), mas brio e alguma hostilidade ao olhar do estrangeiro no carro da organização internacional.

No momento em que percebe a antipatia dos haitianos desaparecer por completo quando caminha pela rua, o visitante começa a questionar o trabalho das organizações internacionais de ajuda e a sua popularidade local. A desconfiança será reforçada por pichações nas paredes e qualquer conversa com um haitiano disposto a falar.

O Haiti é o país mais pobre do hemisfério ocidental, em crise institucional permanente nas últimas décadas, com condições econômicas precárias e ocupado pela ONU. Enfrenta problemas crônicos de criminalidade, instabilidade política e extrema pobreza –sem falar do devastador terremoto de 2010. As ruas da capital parecem um rascunho ou a lembrança de uma rua.

Num sábado à noite, há luz para poucos –e uma extravagante festa, atravessando a rua da embaixada dos Estados Unidos no bairro de Tabarre, uma das poucas fontes luminosas num raio de quilômetros. Ao lado dessa fortaleza de dois andares por trás de muros reforçados está outro centro de poder, a base da missão da ONU no Haiti.

Mas o engarrafamento e a confusão de ruas lotadas que encontro não têm nada a ver com os EUA ou com a Minustah, e sim com o que acontece do outro lado da avenida, no Parc Historique de la Canne à Sucre, engenho de cana-de-açúcar construído durante a colonização francesa, um dos símbolos máximos da exploração colonial e do regime escravista transformado em museu e área de lazer. O lugar hoje é palco de concertos musicais ao ar livre, onde para dançar ao som do compas (ritmo haitiano) de grupos célebres como Kassav e Tabou Combo, a aristocracia local pagará US$ 50 de ingresso –o mesmo valor compra dez dias do trabalho de um artesão entre 7h30 e 16h.

O preço alto não desanima a multidão de aristocratas: o lugar está lotado e as filas são caóticas. Apesar do calor, os homens vestem-se com elegância –suspensórios, calças sociais, sapatos de couro. Muitos fumam cachimbo. As mulheres usam vestidos curtos ou calças dois tamanhos abaixo. Devo ser um dos 12 brancos do lugar. Há dança, bebida e um clima de apreensão no ar que resolve-se com a aparição do presidente do Haiti, Michel Martelly. Sua careca reluzente logo subirá ao palco sob aplausos.

Antes de ser eleito presidente do Haiti em 2011 numa eleição conturbada, "Sweet Micky" ou "Tet Kale" (cabeça careca) foi por mais de duas décadas um dos cantores mais populares do país, famoso por suas performances alegres e infames que foram a trilha sonora dos haitianos durante os conturbados anos pós-Duvalier. O nome de Martelly pode provocar um sorriso ou engulhos a depender do seu interlocutor.

Aqui ninguém quer saber dos escândalos que acompanham sua biografia. Esse público parece adorar "Le Président" e acompanha com empolgação em crioulo uma das muitas canções sobre o país: "Nós já não aguentamos mais comer comida chinesa/ Já não aguentamos mais nos meter num buraco para pegar o metrô/ Haiti, chérie, você me deu a vida/ Mesmo se eu tiver que ir, eu voltarei/ Haiti, você é a minha mãe/ Haiti chérie". Para eles, do lado de dentro dos muros, parece mais fácil querer voltar.


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