Folha de S. Paulo


Greves não são sem sentido e talvez sinalizem abertura de nova fase

"O Brasil está podre" –escrita e falada, publicada e em conversas, essa frase é o lugar-comum dominante quando o tema é nossa atualidade. Ela própria, no entanto, em graus variados conforme as épocas, um lugar-comum na lerda passagem brasileira pelo tempo.

A frase tem um sentido inadequado de novidade nacional: o que se vê é o estado de "podridão" a que o país chegou. O país, porém, não chegou a esse estado. O que está dado como podridão, se assim for a classificação apropriada, na verdade é a revelação das condições dominadoras da vida brasileira há dezenas sucessivas de anos. Hoje ouve-se o que foram o ontem, o anteontem, os anos recentes, os anos distantes, tantas décadas. Os séculos.

Mais do que resultante de acasos e similares, como aconteceu a muitos países, o Brasil é produto de uma obra. Em sua primeira parte, feita à medida e semelhança do colonizador. Depois, conduzida pela classe dominante dele herdeira, no melhor e sobretudo no pior da herança. O sistema aí nascente projetou-se na história como um processo sem interrupção, sem sequer solavancos. Escravocrata por tanto tempo, fez a abolição mais conveniente à classe dominante, não aos ex-escravizados. A República trouxe recusas superficiais ao Império, ficando a expansão republicana do poder e dos direitos reduzida, no máximo, a farsas, a começar do método fraudador das "eleições a bico de pena".

A ditadura de Getúlio foi uma composição de interesses sem arranhar a classe dominante; a ditadura militar foi uma providência contra o risco de que a classe dominante tivesse que dividir alguns gramas da sua posse do país. Lula foi bem sucedido como governo conciliatório porque, mais do que preservar condições ótimas para a classe dominante, aumentou-as como promotor de crescimento e de projeção do país, em troca de pequenas concessões à maioria da população.

E estão explicados os dias hoje. Seja nas revelações que repugnam, de pequena parte dos procedimentos lógicos em um sistema de domínio multissecular. Seja na situação política.

As "reformas" de Temer –terceirização, direitos trabalhistas e arrocho previdenciário– combinam medidas ampliadoras e restabelecedoras de privilégios típicos de classe dominante exclusivista. A nossa, pois, desde sempre. Note-se que Temer completa um ano de presença na Presidência sem emissão de uma só melhoria, de qualquer tipo, nas condições de vida da maioria da população.

Diante disso, as greves e protestos não são sem sentido. Nem mesmo sem inovação: a par da reaproximação de correntes sindicalistas, partidos políticos foram deixados à margem. Do saldo do movimento decorre, agora, a expectativa quanto à sua natureza apenas momentânea ou de preliminar de desdobramentos dinâmicos e influentes. Abertura, talvez, de nova fase.

Fato a ser considerado: na ocasião mesma em que movimentos de protesto popular se lançavam à ação, "dezenas de pessoas de diferentes matizes" lançavam um manifesto apartidário, no qual "intelectuais, artistas, empresários, cientistas", profissionais variados, e outros, contestam as linhas do governo e "conclamam ao debate para formulação de um projeto de nação com autonomia e inclusão" (texto em www.bresserpereira.org.br ).

Para não ficar alheio ao momento de novidades, Temer & cia. trouxeram a sua: enquanto diziam que o país já retoma o crescimento da atividade econômica, no primeiro trimestre registrava-se um recorde: o desemprego elevado a 13,7%, o maior em toda a história da medição.


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