Folha de S. Paulo


No Brasil, a democracia e seus adeptos têm dívida impagável com a corrupção

Curto e fino, na duração de meia hora e na franca serenidade do depoente, um dos mais aguardados depoimentos à Lava Jato foi mais sutil e menos explorável do que o sensacionalismo jornalístico esperava. Ao falar do concubinato dos políticos com as empreiteiras, Emílio Odebrecht, decano dos acusados, qualificou-o como "o modelo reinante" no Brasil, de origem já perdida no tempo. Quase uma sugestão de lembranças remotas, que teriam ajudado a compreender melhor a Lava Jato e a poupá-la do dirigismo que lhe deixou desgastes inapagáveis, tanto éticos como judiciais.

Na longa precedência de tudo o que a Lava Jato atribuiu à criatividade petista, encontro motivo até para uma revelação pessoal: reconheço um mérito histórico na corrupção. Como pessoa e como cidadão, não tenho escrúpulo em dizer que sou agradecido à inescrupulosa transa entre poder público e empreiteiras. E creio mesmo que todo brasileiro adepto da democracia deveria ter igual gratidão, ainda que a gratidão seja pouco encontrável por aqui.

Pois é, a democracia. Figueiredo, temperamental, não sabia se desejava ir-se ou não. Seu círculo, sim, não tinha dúvida. A procura de meios para permanecer irradiava-se do ministro do Exército, Walter Pires, e seu grupo. Não havia unanimidade, com uns poucos preferindo a retirada e o alto do muro povoando-se cada vez mais. Aí estava o ministro da Aeronáutica, Délio Jardim de Mattos, que distribuía disposições simpáticas para todos os quadrantes. Até que levou umas chamadas, sendo talvez mais agressiva a de Walter Pires.

Délio Jardim de Mattos era um dos menos presunçosos na gorilândia. Resolveu dar uma demonstração de firmeza. Soltou uma fala duríssima, ameaçadora aos políticos que abandonavam o time do governo e aos oposicionistas, sem deixar dúvida quanto à disposição do núcleo do regime de manter-se no poder, a despeito do propósito contrário que se generalizara no país. Inesperada, no primeiro momento a fala ameaçadora só teve como resposta as perplexidades e os temores. Então Antonio Carlos Magalhães encerrou o silêncio.

Moacyr Lopes Junior - 3.out.1996/Folhapress
O então senador baiano Antonio Carlos Magalhães em foto de arquivo
O então senador baiano Antonio Carlos Magalhães em foto de arquivo

Antonio Carlos e Délio eram tidos como amigos. Antonio Carlos visto como amigo só podia ser força de expressão. Se não era, a amizade não sobreviveu nem como hipótese. Para os ouvidos em geral, a fala de ACM foi ríspida e exaltada defesa da "abertura", mais valiosa só por partir de quem era uma das eminências do regime. A fala tinha caroço, porém. Venenoso.

A Aeronáutica estava contratando as reformas de aeroportos, àquela altura os de Salvador e Recife. Como se fosse apenas mais um dos pontos em sua resposta ao ministro, ACM enfatizou a necessidade de licitações limpas. A OAS, empreiteira quase desconhecida, faria parte das reformas. Baiana, tinha como um dos donos César Matta Pires. Genro de ACM, que sabia do que falava na referência às licitações.

O brigadeiro Délio não respondeu. Ninguém no governo respondeu. Uma atitude sem precedente. O continuismo começou a murchar e não se recompôs mais. Só foi brigar na eleição indireta, com Paulo Maluf como seu representante.

São insondáveis os desdobramentos possíveis, sem o episódio Délio/ACM, da contradição entre o esgotamento do regime –já perdidos os seus sócios civis– e a pretensão militar de reter o poder. Mas é certo que, sem a fala de ACM, a resistência militar não murcharia como murchou. E sem as denunciáveis condições de contratação da empreiteira OAS pela Aeronáuitica, ACM não responderia a ameaças com ameaça.

No Brasil, a democracia e seus adeptos têm dívida impagável com a corrupção.


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