Folha de S. Paulo


Memória Collorida

O impeachment de Fernando Collor voltou a ser citável, trazido por diferentes maneiras de relacioná-lo com as hipotéticas fórmulas para chegar ao impeachment de Dilma Rousseff. Passado quase um quarto de século, a queda de Collor é ainda um episódio nebuloso para a opinião pública.

A política partidária foi um componente menor na formação da avalanche que derrubou Collor. Puxado por Ibsen Pinheiro, que se projetava no Congresso como a mais promissora liderança política, o gigante PMDB engrossou a base parlamentar de Collor, aprovando até a usurpação das cadernetas de poupança e contas correntes, a pretexto de combate à inflação.

Mais tarde se descobriria que o deputado fora avisado pelo governo para esconder o seu dinheiro, o que ele fez em tempo no Uruguai.

Também não faltou a Collor, enquanto foi possível, apoio ou, quando menos, complacência dos meios de comunicação, desde a campanha que o elegeu com o que já foi definido como "golpe midiático". Mas para esse resultado houve também, coordenada com parte da TV, a colaboração da policia de Romeu Tuma. O que premiou esse delegado de São Paulo com a nomeação, por Collor, para as direções da Polícia Federal e da Receita Federal. Acumuladas, sim.

Essas muralhas protegeram Collor dos olhos públicos, mas não de quem estava dentro da fortaleza. Na divisão de funções das Forças Armadas em serviços da Presidência, a Marinha pôde fazer o acompanhamento íntimo do gabinete presidencial e da conduta pessoal de Collor. Ali dava-se, para os observadores, o oposto do que o exibicionismo de Collor produzia na TV e nos jornais, logo, na população.

Com o passar dos meses, intensificaram-se em número e teor os relatos de que Collor fazia uso de tóxicos, fosse ou não por lazer. Os indícios alicerçavam-se em atitudes e incidentes de insensatez incomum. Exemplo simplório: um presidente da República sair à toa com um carro em disparada e terminar em trombada.

Os indícios acumulavam-se ao tempo mesmo em que a situação do país agravava-se, em muitos sentidos internos e externos, e Collor mostrava-se cada vez mais distante do exercício de governo, propriamente. Os relatos sigilosos multiplicavam-se. O problema se tornou preocupante para os ministros militares.

Os menos desinformados olhavam para uma outra face de Collor. Chamava-se Paulo Cesar Farias, PC Farias. Simpático, inteligente, tão ambicioso quanto Collor, mas de ambição material, em pouco tempo transitava nos territórios do negócio com a desenvoltura e as transações dos veteranos. Sempre presente um lado cinzento e sorrateiro em cada um dos negócios. A PF e a RF estavam em banho-maria.

Da compra da Vasp, com Wagner Canhedo como dono, a minas de diamante e outros negócios em Angola, e daí ao interesse por grandes meios de comunicação no Brasil, petróleo e outros recursos minerais na Bolívia e no Peru, em poucos meses PC Farias passou a nome central no circuito do dinheiro. Sempre referenciado a Collor, em cuja moradia, a então famosa Casa da Dinda, dispunha de um portão para acesso discreto.

Quando o ambiente assim formado começou a se deteriorar, alimentado também pelo agravamento da situação do país, um canal de incentivo se acionou: militares munidos de fartos argumentos e demonstrações estavam prontos para dar uma contribuição, tão discreta quanto eficaz, aos políticos que criavam uma CPI.

Para todos os efeitos, foi o recebimento ilegal de um pequeno carro, dado pela Fiat, o tropeção que enquadrou a queda de Collor nas exigências constitucionais. Na verdade, os indícios ou provas de tóxico e PC Farias foram as duas motivações primordiais. A que outras, claro, se juntaram.

Aqui mesmo fiz alguns registros daquelas duas motivações obscurecidas, sem, no entanto, suscitar o interesse que a engenharia e o abalo da queda de Collor continuam a merecer. Nem por isso se justifica o desconhecimento de "especialistas".


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