Folha de S. Paulo


Só mais um dia

Tenho reclamado à beça do sono descompensado de minha Elis. Lá se vão sete meses de vida e ela -nem ninguém lá em casa- ainda não teve aquela noite "maraviwonderful" de dez horas bem-dormidas. Mas o que me surpreende é que, por volta das 8h, a danada se desperta de vez com uma cara de felicidade como se tivesse brincado o tempo todo com a Galinha Pintadinha e com o pessoal da Palavra Cantada.

Respiro fundo, limpo a remela dos olhos e me transformo, de zumbi a animador de segundas-feiras.

Fazemos uma longa sessão de cantoria, com direito a Dorival Caymmi e Cocoricó, aplicamos cócegas um no outro e observamos os assuntos do dia da Ana Maria Braga na TV. Um pouco depois, mamãe aparece com uma ameixa ou pedaço da melancia mais gostosa do mundo e vamos viver o prazer de uma boa lambança. A meleca das mãos e da boca rapidamente aparece em outras partes do corpo (meu e dela), no pão francês, na toalha da mesa, no sapato de ir para o trabalho.

Em seguida, ela para por uns instantes, fixa os olhos no vazio, abre parcialmente a boca pra um gemidinho, fica levemente rubra e bomba: manda ver em indiscretas bufas. Termina com uma gargalhada diante dos pais empedernidos.

Por todos os lados, tenho escutado em coro "Acaaaaba, 2015!", o ano mais terrível de todos, o ano das desgraceiras nas mais diversas áreas, o ano em que ficamos mais pobres, o ano em que políticos e empresários ficaram nus, o ano em que Minas chorou barro e o ano em que um bebê sírio deitado de morte na praia arrancou pedaços de corações em todo o mundo.

Particularmente, e mais uma vez, que me perdoem a "pollyanice" os leitores, estou vibrando por mais um dia de 2015. Vibrando para olhar no relógio e serem "6h30" para poder pensar: "Agora, só falta hora e meia para minha neguinha acordar".

Recentemente, ela aprendeu a jogar o corpinho desequilibrado sobre mim, ainda deitado na cama, ao mesmo tempo em que solta uma gargalhada tão encantadora como capaz de aliviar por mais um dia meus azedumes, parecidos com os do restante da nação.

Minha filha me faz valorizar mais o tempo que tenho agora e projetar com mais calma e menos ansiedade o amanhã. Faz eu refletir sobre o que tenho e não sobre o que não tenho. Faz eu entender de maneira multifocal a beleza da mamãe e dos amigos, os calundus da vovó e a coca com pinga do vovô.

Vibro por haver mais um dia para que "coxinhas" e petralhas argumentem sem ofensas e no intuito de construir uma democracia mais sólida, vibro para haver mais um dia para que os intolerantes se arrependam das besteiras publicadas nas redes sociais e entendam, de vez, que diversidade é sinal de evolução. É muito peso querer sanar todas as dores do universo apenas no ano que vem.

As crianças têm o poder de lembrar que a passagem do tempo precisa de referências mais elaboradas e profundas para insultar o presente e almejar com tanto afinco o futuro. As crianças têm o poder de fazer pensar que atar os dedinhos em sinal de paz pode, sim, ser uma tarefa simples, de hoje, sem a necessidade de chutar o ano velho e depositar as esperanças todas no ano novo.


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