Folha de S. Paulo


Fogos e tensão em Hong Kong

Chovia intensamente naquela noite histórica de Hong Kong, há exatos vinte anos.

Em cerimônia oficial, a bandeira da China subia o mastro para ocupar espaço antes dominado pelo estandarte britânico. Terminavam 156 anos de colonialismo do Reino Unido num rincão asiático de volta ao controle de Pequim.

A mudança das bandeiras gerou momento icônico, da transição de um período histórico modelado por hegemonia global de potências "atlantistas", como o Reino Unido, para uma era de maior concentração de poder político, econômico e militar em países banhados pelo Pacífico, movimento ilustrado sobretudo pela ascensão da China.

Naquele 30 de junho de 1997, acompanhei em Hong Kong o dia derradeiro da soberania de Londres no território. Fazia minha última cobertura jornalística dos três anos em que morei na China, como correspondente da Folha.

Sobravam sinais de melancolia na partida britânica. Chris Patten, governador em despedida, não economizou lágrimas em diversos momentos, como na saída da residência oficial. Acompanhou o príncipe Charles em festa, na região do porto Victoria, para 10 mil pessoas, com apresentações musicais e desfile militar, na tentativa de melhorar o ânimo entre fãs da família real.

Pude acompanhar passeio de Patten com o então primeiro-ministro, Tony Blair, por Pacific Place, à época o mais sofisticado shopping-center de Hong Kong. Distribuíam sorrisos e apertos de mão a uma multidão, de chineses e estrangeiros, comprimida nos corredores do centro comercial. Buscavam vender a imagem do poder britânico despedindo-se com popularidade, ao deixar sistema político e econômico astronomicamente mais liberal que o vigente no restante da China.

Ao término da cerimônia oficial, corri para o centro de Hong Kong a fim de presenciar o primeiro protesto do local Partido Democrático contra a sombra dos comunistas, a pairar sobre o território. Um economista britânico, trajando elegante smoking, me disse: "Saio de um banquete e venho a um comício, isso não parece a China."

Entre simpatizantes do regime de Pequim, havia motivos de sobra para comemorar a recuperação de Hong Kong. Impressionante show pirotécnico, secular tradição chinesa, iluminou o céu.

O presidente Jiang Zemin, no discurso, prometeu manter a fórmula "um país, dois sistemas", negociada entre Londres e Pequim. O entendimento prevê soberania chinesa em Hong Kong, mas com manutenção de liberdades deixadas pela administração britânica.

Jiang Zemin, no entanto, observou: a China não vai permitir a transformação do território em "base de subversão", ou seja, em palco para fortalecimento de forças a questionar o Partido Comunista no país mais populoso do planeta.

O desafio permanece, agora com o presidente Xi Jinping. Duas décadas depois, novas gerações de habitantes de Hong Kong sinalizam crescente disposição a questionar Pequim. E, como o governo chinês não indica maior flexibilização, vislumbra-se colisão a gerar tensões na política de um dos centros financeiros mais relevantes do planeta.


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