Folha de S. Paulo


Após a Paz Celestial

Corria o trepidante ano de 1989. Esfarelava-se a Guerra Fria. Regimes comunistas da Europa oriental ruíam como castelos de cartas. A URSS, com Mikhail Gorbatchev no Kremlin, ensaiava a iminente desintegração.

Livre da bipolaridade ideológica, a América Latina testemunhava avanços de transições à democracia, apesar do caos econômico. Brasileiros elegeram presidente, por voto direto, Fernando Collor de Mello.

O furacão mudancista não poupou a China, então nos primórdios de suas reformas. Estudantes ocuparam, por semanas, a praça da Paz Celestial, coração de Pequim. O patriarca chinês, Deng Xiaoping, hesitava na opção pelo uso pela força para estancar os protestos.

O vírus das mudanças, oriundo da Europa oriental, atravessou a Muralha da China. Em meio às manifestações por democracia e contra corrupção, Gorbatchev desembarcou na capital chinesa, em visita oficial. A presença do pai da perestroika significou uma overdose de ânimo aos estudantes a desafiar o poderoso Partido Comunista da China.

A 4 de junho de 1989, desabou violenta repressão sobre a praça da Paz Celestial. Deixou um rastro de mortes e destruição. Desde então, se intensificaram as amarras da repressão política imposta pelo PC chinês, apesar do aprofundamento ousado e ininterrupto das reformas econômicas.

Em 1992, do outro lado do planeta, o Brasil viveu a onda de protestos dos jovens caras-pintadas. Collor, em meio ao processo de impeachment, renunciou. Desde então, pouco mudou no horizonte de um sistema político carcomido pelo fisiologismo e corrupção.

Quase trinta anos depois, jovens voltam a embarcar em cenas de protagonismo político, em cenários tão distantes entre si. No Brasil, assistimos, por exemplo, ao fenômeno de ocupações de escolas. Em Hong Kong, onde imperam liberdades herdadas da era colonial britânica, estudantes lideraram em 2014 a inundação, por correntes humanas, das ruas de um dos principais centros financeiros asiáticos.

As pulsações ocorridas décadas atrás não acumularam forças para alterar, de forma significativa, o sistema político brasileiro e o monopólio do poder exercido pelo PC chinês. Hoje em dia, no entanto, se empilham condições responsáveis por sugerir um impacto mais estruturante oriundo de iniciativas como a dos estudantes.

Os cenários atual e do início dos anos 1990 carregam diferenças significativas. A começar pela revolução tecnológica, arma potente para ativistas obter informação e mobilizar seguidores. Imagens abundantes também contribuem para inibir ações de forças de repressão.

Os últimos anos testemunharam alterações tectônicas nos tecidos sociais chinês e brasileiro. Nos dois casos, avanços de urbanização e de reformas econômicas resultaram em ampliação das classes médias. Ou seja, mais setores dispostos a reivindicar mudanças e transparência.

Portanto, lideranças políticas em universos e sistemas tão distintos como Brasil e China podem olhar para a história recente como um contra-exemplo. Melhor levar seus jovens mais a sério.


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