Folha de S. Paulo


O PT, o russo e o chinês

Liu, Ivan e José. Um chinês, um russo e um brasileiro, nascidos na década de 1980 e, hoje, com 35 anos de idade. Pertencem às chamadas "novas camadas médias".

Do ponto de vista de liberdades individuais e acesso a consumo, os representantes dessa geração vivem melhor ou pior que seus pais, quando tinham a mesma faixa etária?

Vivem melhor. Naturalmente, não se trata de ignorar o deficit de liberdade política na China, o autoritarismo do putinismo ou as imperfeições da democracia brasileira.

O fundamental, para entender o momento histórico e o processo em curso nesses países tão distintos, é acompanhar as mudanças estruturais responsáveis por, em 30 anos, abalar os pilares sobre os quais, ao longo de séculos, tais sociedades se apoiaram.

O terremoto advém com o encontro de duas tendências. Livre da ameaça comunista, o capitalismo mergulha numa fase de expansão. Precisa de novos mercados, para vender bens em larga escala.

O capitalismo encontra então um Partido Comunista sedento por injetar economia de mercado em seu país. O líder chinês Deng Xiaoping, em 1978, pisoteia dogmas e decreta o início das reformas, para resgatar a China da miséria e do isolamento herdados do maoismo e manter o poder da elite governante desde a revolução de 1949.

China sedenta por dinamismo econômico e capitalismo em busca de mais consumidores compõem o ponto de partida da equação a modelar o século 21, do ponto de vista socioeconômico. O modelo se espalha, sobretudo com a debacle da URSS, em 1991.

A ideia de injetar doses cavalares de economia de mercado, nas últimas décadas, contaminou países tão distintos como Índia, Estônia, México e Indonésia, entre outros. No mundo dos países emergentes, o tecido social passa por plásticas indeléveis.

Um processo sem paralelos na história, em função da velocidade estonteante, resulta na criação de novas classes médias, conceito amplo, apoiado não em critérios econométricos, mas no fato de parcelas expressivas da população global se despediram da pobreza absoluta.

Adicione-se ao caldeirão mais dois ingredientes globais: urbanização acelerada e revolução tecnológica sem precedentes. Mais cidades e mais redes sociais significam maior fluidez em informação e em capacidade de exercer cidadania.

Em 1999, quando o PC chinês celebrava o cinquentenário da chegada ao poder, conversei em Pequim com um funcionário do Comitê Central. Tasquei a pergunta incômoda. Quando os chineses poderão eleger seus líderes por meio do voto?

Meu interlocutor disparou: "É uma questão para meus netos resolverem". A resposta, embrulhada em simbolismo, abandonava o dogma marxista da eternidade do poder revolucionário e admitia a chegada de desafios ao PC chinês, que se intensificarão nos anos vindouros.

No caso brasileiro, repleto de diferenças com o mundo chinês, tenho a sensação de que o PT não soube ler as mudanças ocorridas nos últimos 30 anos. O tecido social se alterou drasticamente, a democracia avançou. Governar como se estivesse no século 20 é um equívoco colossal.


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