Folha de S. Paulo


'Realpolitik' e a etiqueta diplomática

Uma lufada de fúria estremeceu a diplomacia australiana. Semana passada, o presidente de Israel, Reuven Rivlin, desmarcou visita ao país para privilegiar convite do Kremlin. Imposições da "realpolitik" sobre etiqueta diplomática.

A opção israelense ilustra a intensificação de laços com o Kremlin, adversário de décadas passadas, e escancara a crescente relevância russa no Oriente Médio. A trágica guerra da Síria despontou como oportunidade para a Rússia buscar reafirmar seu questionado poderio diplomático e militar. O presidente Vladimir Putin se esforça ainda para salvar, a um insuportável custo em vidas humanas, o aliado Bashar al-Assad e impedir que o Estado Islâmico imponha um paraíso para terroristas perto de fronteiras meridionais do Cáucaso.

Ironias da história encapsulam a aproximação entre Israel e Rússia. No czarismo, em especial no século 19, matanças antissemitas conhecidas como pogroms internacionalizaram o vocábulo que significa destruição, em russo. A era stalinista enfileirou atos antijudaicos, mas ditames geopolíticos levaram a URSS a desempenhar papel fundamental, com apoio político e militar, na viabilização do Estado judeu, em 1948.

A consolidação da aliança entre EUA e Israel, ocorrida apenas em 1967 e no auge da Guerra Fria, levou Moscou a reescrever a relação com o sionismo. De aliado na luta contra o colonialismo britânico, passou a descrever o movimento nacionalista judaico como "farol do imperialismo".

O Kremlin mandava às favas qualquer parentesco ideológico com pilares socialistas de Israel e optava por demonizar o Estado judeu, a fim de solapar os EUA no Oriente Médio. A decisão ainda reverbera, pois parte da chamada esquerda internacional continua a papaguear a propaganda soviética, descrevendo o movimento palestino como "capítulo crucial da luta anti-imperialista".

A Guerra Fria se esfarelou, mas ainda sobrevive uma retórica empobrecida, maniqueísta, sobre o conflito israelo-palestino. Tentativas de demonizar um dos lados alimentam correntes da intolerância e enfraquecem cada vez mais buscas por uma solução negociada.

Putin, ciente dos contornos do mundo pós-URSS, age para, além de aprofundar seu regime, recuperar poder e influência ao Kremlin, corroídos pelas eras Yeltsin e Gorbachev. Cultiva interlocutores tão distintos como Israel e Irã, que, por sua vez, precisam de laços com Moscou para implementar agendas políticas, econômicas e até mesmo militares.

Em 2016, Rússia e Israel contabilizam 25 anos de relações diplomáticas. O premiê Binyamin Netanyahu já começou a celebração recomendando ao presidente Rivlin, de cargo cerimonial, que viaje a Moscou ainda em março.

O mensageiro de Bibi levará claro recado: Israel quer garantias de que o arqui-inimigo Hizbollah, grupo libanês defensor de Assad, não se fortaleça com armas russas. Putin vai reiterar promessa feita a Netanyahu, para se equilibrar num jogo delicado entre inimigos.

O Kremlin enterrou sua lógica bipolar da Guerra Fria no teatro do Oriente Médio. Pena que nem todas as abordagens sobre a região fizeram o mesmo.


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