Folha de S. Paulo


A coruja da minha vida

Caminhava pelo sítio e, como de hábito, com a matilha à minha volta. Os cães corriam em diversas direções, vigiavam a cerca, buscavam novos cheiros, latiam e pulavam num ritual embebido em adrenalina. A manhã se esticava tranquila e resolvi checar o frondoso pé de jambo. Estava alguns passos à frente dos cachorros, distraídos por sua própria e frenética dinâmica.

No solo, em meio às robustas raízes, avistei um "objeto não-identificado". Tinha poucos centímetros. Era plumado. Curvei-me com vagar.

Estava diante de uma coruja. Olhos fechados e imóvel, dormia ali, aproveitando o sol da manhã. Parecia um desses bonecos de geladeira. Lembrei-me do pinguim que adornava a cozinha de minha avó.

As memórias do passado sumiram em uma fração de segundo, pois me dei conta do risco de os cães chegarem, naquela volúpia de matilha, e interromperem o sono da coruja de forma pouco civilizada. Mas, na minha ignorância ornitológica, não sabia se o plumado dormia ou se estava morto.

Ilustração Tiago Elcerdo
#ARSAO2911 BICHOS

Peguei uma folhinha e a abanei próxima à cara da ave. Dois olhos esbugalhados e encantadores saltaram. Ela ensaiou um voo curto, mas não conseguiu ultrapassar o alambrado. Peguei-a com delicadeza em uma operação rápida, enquanto os cães estavam entretidos a vários metros de distância.

Ajeitei-a na mão esquerda enquanto acariciava sua cabeça com o indicador da direita. A corujinha se aninhou e relaxou —às vezes, fechava os olhos, embalada pelo movimento cadenciado do meu dedo.

Levei-a a um veterinário especializado em animais silvestres. Queria saber do estado de saúde dela e se poderia domesticá-la. Na conversa, a assistente da clínica revelou ter uma coruja domesticada.

Checagem de saúde feita e com resultado positivo, os veterinários deram o veredicto: melhor reintroduzi-la na natureza. Já estava crescidinha para mudar de hábitos. Despedi-me. Não vou esquecer aqueles olhos esbugalhados e fixos em mim.


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