Folha de S. Paulo


Ao abandonar "construção de nações", Trump chama as coisas pelo nome

Carolyn Kaster/Associated Press
 President Donald Trump speaks at Fort Myer in Arlington Va., Monday, Aug. 21, 2017, during a Presidential Address to the Nation about a strategy he believes will best position the U.S. to eventually declare victory in Afghanistan. (AP Photo/Carolyn Kaster) ORG XMIT: VACK105
O presidente Trump discursa na segunda (21) sobre a nova linha de atuação dos EUA no Afeganistão

"Não estamos construindo uma nação novamente. Nós estamos matando terroristas", sentenciou o presidente norte-americano, Donald Trump, ao anunciar o arcabouço vazio de sua insondável "nova estratégia para o Afeganistão e o Sul da Ásia" em horário nobre de TV na segunda (21).

Não deixa de ser uma fina ironia dos deuses da história que a proposição, cínica mas ao mesmo tempo realista, tenha sido enunciada pelo anão moral que ocupa a Casa Branca. Cabe a ressalva: como tudo o que Trump diz ou faz, há grande possibilidade de ficarmos apenas no campo de retóricas prontas para serem desmentidas.

No fim das contas, tende a ser melhor para o mundo uma "realpolitik" do que a repetição em moto contínuo do mito dos valores fundamentais dos Estados Unidos como guia de sua atuação.

Como o século 20 que viu a emergência de Washington como poder global sem paralelo na história, há exemplos abundantes das desgraças cometidas em nome dessa ideia. Naturalmente, o sistema concebido pelos "founding fathers" no século 18 é o melhor possível para um certo tipo de sociedade, e o Ocidente sempre precisou de faróis pelas brumas que atravessou.

Mas certamente é discutível que sua aplicação, "manu militari", a confins diversos do globo. Nesse sentido, é também curioso que o alvo principal do discurso de Trump não tenha sido o democrata Barack Obama, que já em 2011 falava em "construir a nação em casa" ao ensejar uma saída do Afeganistão, e sim o brucutu predileto de todos os liberais nos anos 2000: George W. Bush.

Foi ele quem resgatou o conceito da "guerra justa" vigente no segundo conflito mundial, destroçado na intervenção americana no Vietnã e de certa forma reconstruído no imaginário popular com as obras de Steven Spielberg sob influência do historiador Stephen E. Ambrose ("O resgate do soldado Ryan", "Band of brothers"). Logicamente, as ruínas fumegantes do World Trade Center facilitaram a vida de Bush filho, que em 2004 proclamava as virtudes do "nation-building".

Por uma década eu perambulei, a serviço do jornalismo, por lugares em que a tal "construção de nações" ocorria. Não é preciso mais de meia hora em Cabul ou Bagdá para entender a falência primordial do modelo, que desconsidera condições locais de temperatura e pressão desde o começo. Os resultados práticos estão aí, do Estado Islâmico ao interminável nó afegão.

Não se trata aqui de relativismo barato. O sistema ocidental, aqui compreendido como democracia liberal, é a perfeita imagem que lhe foi dada por Churchill: o pior do mercado, excetuando todos os outros tentados. Mas parece claro que o meio de ele continuar dominando o mundo não é pela força, mas pelo exemplo: possibilidade maior de prosperidade e liberdade. Claro, aqui voltamos ao campo das ideias, bastando meia hora de passeio pelo centro de São Paulo para matizar tal crença.

O risco evidente da assimilação da realidade é cair no pragmatismo inflexível, quando não o mais desabrido cinismo manipulador, como o que orienta o mundo brutalizado de Trump, Putin e outros. Até pelo seu papel pregresso de líder moral do Ocidente, temporariamente suspenso, espera-se dos EUA responsabilidade no exercício da força: de outra forma, será aceitável usar artefatos nucleares, hoje para "matar terroristas", amanhã contra eu ou você.

Mas chamar as coisas pelo nome talvez seja um começo.


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