Folha de S. Paulo


Sem opção e com agenda dura à frente, Temer beija a cruz do reformismo

Alan Marques/Folhapress
Presidente Michel Temer se reúne com integrantes da comissão da reforma da Previdência, em Brasília
Presidente Michel Temer se reúne com integrantes da comissão da reforma da Previdência, em Brasília

O governo Michel Temer precisa descansar bem durante a folga do Carnaval, pois o que vem por aí é uma agenda vertiginosa que fará desaguar no mesmo riacho poderosas forças na política e na economia.

Sua habilidade ou não em transpor as corredeiras até o meio do ano deverá ajudar a formatar a impressão que seu curto governo deixará na história.

Começando pelo imponderável, a Lava Jato, sempre ela. A delação da Odebrecht, "do fim do mundo" para o público, terá seus detalhes divulgados nos próximos meses -talvez de uma só vez, mais provavelmente em prestações. O procurador-geral Rodrigo Janot, se por fim não buscar um terceiro mandato, deixa em tese o cargo em setembro; certamente não irá embora com essa lacuna aberta.

O impacto político ajudará a definir o grau e qualidade de sobrevivência de Temer, de seu gabinete, de sua base de apoio e de praticamente todo mundo com a cabeça na eleição de 2018.

Neste contexto, a discussão sobre o foro privilegiado em curso no Supremo e a tentativa unânime da classe política de tornar caixa 2 uma infração menor, dissociada dos crimes que o petrolão mostrou serem tão intrinsecamente ligados à prática quanto de difícil identificação, serão pouco racionais.

Junho chegará com o Congresso do PT em que Luiz Inácio Lula da Silva deverá dar a palavra de ordem a suas hostes. Se será candidato ao Planalto, tendo condições jurídicas para tal, e se irá apoiar-se somente na bandeira do saudosismo do "feel-good factor" dos seus anos no poder -que seu governo tenha assistido o assalto à Petrobras, a farsa da bonança do Rio, a montagem do arcabouço que nos deu Dilma Rousseff e sua ruína, isso é outro ponto.

Um Lula na rua será espinho para um Temer buscando fazer avançar sua agenda parlamentar ambiciosa e, até aqui, bem-sucedida. Afinal de contas, uma coisa é aprovar a PEC do teto de gastos, outra é convencer deputados e senadores a serem acusados pela oposição de "destruir os direitos dos trabalhadores" sem querer discutir conteúdo.

Não importa o quanto isso seja falso; no Brasil, a tal da pós-verdade vem desde Cabral.

A agenda da reforma trabalhista supõe-se mais fácil de negociar, dado que mesmo as jurássicas centrais sindicais brasileiras já perceberam alguma inevitabilidade. Como irão reagir na hora H, em especial com a previsível reação às mudanças na Previdência, é outra questão.

O cenário econômico no geral começa a conspirar em favor do Planalto. Há sinais aqui e ali de retomada de atividade, embora nada que permita a criação de um bloco carnavalesco comemorativo por Temer. Nesta quarta (21), o Banco Central deve referendar mais uma queda nos juros, e o governo parece seriamente empenhado em bolar uma simplificação tributária ainda este ano -mesmo o fantasma da CPMF foi invocado, no Planalto e no Congresso, sob a condição de que só encarnaria no cadáver do IOF.

Nesta terça (21), o impopular Temer falou pela enésima vez sobre o que pretende para si: ser visto como um reformista que resistiu à pressão do populismo, mas não à vontade de tomar medidas populares. Sempre há coisas no bolso para isso: uma liberação de contas inativas do FGTS, um reajuste de Bolsa Família.

Mas são insuficientes para mudar rapidamente o principal indicador a preocupar o governo: o desemprego galopante herdado da recessão provocada por Dilma. Sem isso, não haverá guinada em pesquisas e ambiente favorável para construir uma candidatura governista em 2018.

Se não por gosto, mas talvez por força da realidade orçamentária e dos limites do pacto político que o sustenta, Temer segue beijando a cruz do reformismo, ciente de que ela não trai a natureza das cruzes: mesmo que dê certo, o reconhecimento só vem bem depois _se vier.

*

Se há um aspecto engraçado da crise de modelo político que começou a afogar o país em 2013 e segue sua desabalada carreira, como diziam os delegados antigamente, é que nunca faltam episódios anedóticos para acentuar o caráter burlesco de nossa República.

A vez agora foi do impagável Romero Jucá, senador todo-poderoso do PMDB de Roraima. Ao comentar ao "Estado de S. Paulo" a hipótese de que o foro por prerrogativa de função não pode ser extinto apenas para políticos, ele saiu-se com essa: "Suruba é suruba".

De um homem público que só não continuou como mandachuva do governo Temer porque foi pego em grampo bolando hipóteses para "estancar a sangria" gerada pela Lava Jato, não se esperava nada diferente em terminologia.

A novidade pontual está no fato de que, na essência se não na forma e na intenção de ameaçar o Judiciário, Jucá está certo. Se vale para o senador, tem de valer para o juiz.

A inconfidência desbocada também diz muito sobre a noção, clara a todos os políticos, de que a Lava Jato parece ter estabelecido um ponto de não retorno na vida pública do país -como já escrevi em algumas ocasiões, com excessos também.

Mas como disse um dos procuradores que chefiam a operação, a alegação de que a ação "criminaliza a política" é patética; bastaria que os políticos não tivessem cometido os ilícitos que vêm sendo descobertos há quase quatro anos.


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