Folha de S. Paulo


Europa tem muitos problemas, e confiança deve durar pouco

O fato de a crise de migração ter se acalmado perceptivelmente desde 2015, a derrota da populista anti-UE Marine Le Pen para Emmanuel Macron, na França, este ano, e a provável reeleição de Angela Merkel na Alemanha, tudo isso suscitou novo otimismo com a ideia de que a Europa sobreviveu a mais uma rodada de desafios.

Calma lá. Haverá muitos outros problemas a serem administrados nos próximos meses, e é pouco provável que a confiança atual dure muito tempo.

Stephane Mahe - 13.jul.2017/Reuters
O presidente francês, Emmanuel Macron, chega a reunião com a chanceler alemã, Angela Merkel
O presidente francês, Emmanuel Macron, chega a reunião com a chanceler alemã, Angela Merkel

Para começar, a entrada em cena do jovem e dinâmico Macron levou a França a virar alvo de inveja de outros na Europa, também sedentos por uma nova geração de líderes em seus próprios países.

Mas o resultado mais notável das eleições francesas este ano foi a escala da derrota dos partidos de centro-direita e centro-esquerda que dominavam a política francesa havia décadas. Fossem a favor ou contra a UE, os eleitores franceses queriam mudanças.

Macron precisa atender a essa expectativa com uma legislatura em que 70% dos deputados estão cumprindo seus primeiros mandatos. Se a inexperiência enfraquecer sua capacidade de revitalizar a economia da França e energizar seu mercado trabalhista, todos esses rostos novos na política passarão a ser muito menos bem-vindos.

Mais amplamente, Macron precisa colocar a casa fiscal francesa em ordem antes que os alemães céticos concordem em trabalhar com ele pela união fiscal da UE, a união bancária e outras reformas necessárias da UE.

O presidente perdeu rapidamente dez pontos percentuais de seu índice de aprovação inicial, quando os cidadãos começaram a olhar mais além de seu sorriso aberto e discursos confiantes e enxergar os cortes nos gastos sociais. E, como seus predecessores também descobriram, reformas trabalhistas, por mais habilmente possam ser apresentadas, levam os sindicatos para as ruas.

E há a Itália, país que permanece em um impasse político. É cada vez mais provável que as próximas eleições, previstas para a primeira metade de 2018, produzam mais um governo fragmentado que não conseguirá promover reformas políticas e econômicas muito necessárias —ou então um governo do Movimento Cinco Estrelas, que é abertamente hostil à União Europeia.

A história dos migrantes continua a transformar a paisagem política italiana. Um acordo da UE com a Turquia reduziu fortemente o fluxo de pessoas desesperadas que atravessavam o mar Egeu rumo à Grécia, mas as chegadas de migrantes à Itália, principalmente pessoas vindas da Líbia pelo mar, aumentaram 20% entre 2015 e 2016.

No primeiro semestre deste ano, apenas 9.000 migrantes chegaram à Grécia e 4.000 à Espanha, mas a Itália já recebeu 90 mil pessoas.

O sentimento de indignação é crescente no país, na medida em que os governos francês e austríaco parecem estar mais interessados em dificultar a passagem por suas fronteiras com a Itália do que em compartilhar mesmo uma pequena parte da carga imposta a esse país. Não está sendo implementado o sistema de cotas da UE, pelo qual os países membros deveriam dividir a pressão dos refugiados.

Esperava-se, em especial, que como parte desse sistema os países do grupo de Visegrad, no Leste Europeu (Polônia, Hungria, República Tcheca e Eslováquia) recebessem cerca de 11 mil refugiados.

Até o momento em que este texto foi escrito, a Eslováquia e a República Tcheca receberam 28 pessoas, e a Polônia e a Hungria, nenhuma. Os migrantes não são a única área em que os países do Leste Europeu vêm desafiando o resto da UE.

O líder húngaro Viktor Orban abraçou plenamente o termo "democrata iliberal", lutando para consolidar seu controle político do país, e o governo direitista polonês ainda está trabalhando sobre uma legislação que permitirá aos parlamentares demitirem os juízes e substituí-los por seus aliados políticos.

A UE ameaçou alocar menos dinheiro a esses países em seu próximo orçamento, mas ainda não foi feito nada de convincente para obrigá-los a obedecer às regras da união.

Como se tudo isso não bastasse, há também o esforço do presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, para dotar-se de poderes "putinescos" em seu país, além dos problemas que isso cria entre a Turquia e a UE.

Erdogan descobriu que a hostilidade pública em relação à Europa fortalece sua popularidade em casa, e uma tentativa sua de se reeleger em 2018 certamente vai criar mais atrito com a Alemanha e outros países.

Também pode comprometer o acordo fechado por Erdogan com a UE para manter um número enorme de refugiados na Turquia, em troca de dinheiro e promessas políticas várias da Europa.

É provável que o acordo seja mantido, porque funciona bem para as duas partes. Se isso não acontecer, porém, a Europa pode enfrentar uma nova crise de migração, reacendendo a insatisfação popular em todo o continente.

Acrescentem-se a isso tudo os problemas com Trump, provocações de Putin e as complexidades e os grandes interesses em jogo nas negociações do "["brexit"]"http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2017/03/1870825-reino-unido-ativa-negociacoes-do-brexit-veja-quais-sao-as-regras.shtml:.

Angela Merkel continua a ser uma força em favor da estabilidade, enquanto Macron pode energizar as reformas na França e na UE de modo mais amplo, mas está claro que os líderes da UE terão muito trabalho pela frente pelo resto deste ano e mais além.


Endereço da página:

Links no texto: