Folha de S. Paulo


Relação entre o Brasil e os Estados Unidos tem de sair da inércia

Diante da incerteza sobre quais serão os eixos prioritários da política externa do futuro governo americano, o Brasil se apressa para redefinir a textura de sua abordagem estratégica para os EUA.

Os desacertos dos últimos anos não são desprezíveis. Quando Brasília e Washington pareciam caminhar para construção de uma agenda consonante à sua importância hemisférica e global, veio à tona o escândalo da espionagem americana contra Dilma Rousseff, deflagrando uma crise de confiança de contornos traumáticos —isso sem contar o tombo dado no Brasil, pelo governo Obama, na mediação do acordo nuclear iraniano em 2010.

Apesar da visita de Dilma a Washington, em 2015, a agenda do reencontro foi composta por temas paliativos, sem ênfase no que seria essencial para os dois países: a construção de uma relação estratégica convergente de longo prazo.

Nas aparências, a "paz" foi selada, mas, no fundo, a "desconfiança" não foi dissipada.

O governo Temer definiu como saída do hiato a expansão do comércio como matéria prioritária para as relações com os Estados Unidos e elegeu ainda o tema desenvolvimento sustentável como um dos componentes centrais para alavancar o poder de influência do Brasil na ordem internacional.

Contudo, o cenário para tais escolhas pode ser obliterado, a depender dos enfoques de Trump.

Damon Winter - 1º.nov.2016/The New York Times
FILE -- Then candidate Donald Trump smiles as the crowd chants
Donald Trump, em imagem feita dias antes da eleição

Insistir na retórica de "laços históricos; países amigos; semelhanças multiculturais; democracias raciais" já não supre a ausência de uma agenda estratégica objetiva e tampouco irá dissolver a crosta de gelo que se formou nas relações bilaterais nos últimos anos.

Na formulação de uma nova política é importante Brasília levar em conta que a parceria na área de defesa é limitada, o diálogo sobre segurança é restrito, e o intercâmbio comercial é subaproveitado.

Tratando apenas de comércio, as exportações brasileiras para os EUA em 2015 representam menos de 1,5% das importações americanas. Já as importações brasileiras representam 2,5% do total das exportações dos EUA. Os investimentos brasileiros representam 1% dos investimentos estrangeiros diretos nos EUA. Não obstante, dos quase US$ 5,5 trilhões de investimentos diretos norte-americanos no exterior, o Brasil é receptor de apenas 2%.

Ao redesenhar as suas prioridades é necessário que Brasília repense o padrão de suas políticas públicas internacionais com Washington.

Em temas como combate ao crime organizado, segurança e cooperação jurídica internacional, a atuação do Brasil não obedece a nenhuma arquitetura interinstitucional centralizada, padronizada, orgânica ou até mesmo harmônica entre as polícias, o Ministério Público e a Justiça.

Ao funcionar de forma desconexa entre si e sem nenhuma estratégia estrutural, o poder de barganha do Estado brasileiro fica fragmentado. Faz-se política institucional no varejo.

Enquanto o Brasil não for capaz de causar reflexão em Washington sobre suas escolhas estratégicas, será difícil obter do establishment americano maior sofisticação no trato com Brasília, mesmo sob nova administração.

Por outro lado, quanto mais os EUA tardarem a decifrar o potencial da nação brasileira e a compreender que as nossas aspirações mútuas não são díspares, mais o Brasil expandirá o seu sistema de alianças, buscando em Pequim e Moscou o reconhecimento que os americanos se refutam a fazer.

As relações do Brasil com Rússia e China são balizadas essencialmente por negócios, já com os americanos é historicamente edificada em princípios.

O Brasil está na periferia da agenda exterior americana. Uma atenção protocolar é insuficiente.

É hora de ambos os países saírem de sua mútua inércia.


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