Folha de S. Paulo


Democracia turca agoniza entre golpe e contragolpe

Na Turquia a democracia já é uma fábula. O presidente do país, Recep Tayyip Erdogan, aplicou um contragolpe dizimando o Judiciário, imobilizando o sistema educacional e expurgando as forças de segurança pública.

O islã político liberal pode ter falhado no país. Não por ser islã, mas pelas conotações autoritárias de um governo que parece ter abandonado as regras democráticas.

De forma geral, os partidos políticos islamistas ainda não conseguiram provar que é possível conviver com o contraditório, até porque a essência da política serve para construir pontes entre os diferentes e não para impor uma visão autocrática sobre os demais.

No Egito, a Irmandade Muçulmana cometeu erros crassos. Na Tunísia, o Partido Ennahda teve um péssimo começo e depois se ajustou.

Na Turquia, o AKP, de Erdogan, que havia começado bem, implodiu todo seu capital político, ético e moral.

Via de regra, partidos políticos de corte religioso fracassaram praticamente em todos os cantos do mundo. Raros (ou inéditos) são os casos de partidos assentados sobre premissas fundamentalistas que tenham logrado consolidar um crível Estado de direito.

No fundo, a malfadada tentativa de golpe está sendo utilizada para Erdogan eliminar de cena inimigos, adversários e hipotéticos futuros oponentes.

Pairaram no ar novas teorias conspiratórias na fase do contragolpe. Entre as confabulações, ganha tração a ideia de o golpe ter sido orquestrado entre atores internos em associação com países da região.

O expurgo posto em marcha pelo governo e as consequências políticas internas e externas ainda precisam ser matizadas com precisão.

Um frágil cenário sugere que Ancara irá reavaliar as dimensões de suas alianças com os EUA e com a Arábia Saudita.

Da mesma forma, ganha força a tese de a diplomacia turca mudar a abordagem estratégica em relação à Rússia, ao Irã e ao fronte sírio.

As agências estatais de notícias da Rússia e do Irã indicam que Erdogan foi informado da tentativa do golpe, previamente, por Moscou. Parece, ainda, que a operação contava com a anuência de alguns países árabes que não desejavam uma mudança na atitude turca em sua política regional antes das eleições americanas, em novembro.

A motivação do golpe supostamente agradaria a atores internos e externos.

Isto é, seria a solução para se livrar do despotismo de Erdogan e, de quebra, impedir sua intenção de dar uma reviravolta em sua política externa em relação à Síria e à política de "fronteiras abertas" aos grupos terroristas Estado Islâmico e Jabhat Al-Nusra. Ninguém em Ancara ou na região desmentiu essa concertação.

Se é verdade ou não, isso será esclarecido pelos próximos passos da diplomacia turca. É observar o fôlego dos grupos terroristas em campo e a política de fronteira da Turquia. Se isso de fato ocorrer, a guerra na Síria poderá estar perto do fim.

Saudosista do poder do Império Otomano, daqui para frente Erdogan tende a adotar um personalismo composto por traços imperialistas do xá da Pérsia, Reza Pahlevi, e pelo totalitarismo soviético de Joseph Stálin.

Nisso tudo, a democracia turca, no leito de morte, será, convenientemente, sacrificada.


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