Folha de S. Paulo


A arte pela arte

SÃO PAULO - Gostei dos retratos de personalidades brancas que ganham cor e traços negroides feitos pela ex-consulesa da França Alexandra Loras. Não gostei tanto dos ataques que a exposição, intitulada "Pourquoi Pas?", sofreu. É claro que o direito à crítica está incluído no pacote liberdade de expressão, mas penso que os grupos que polemizaram com Loras extrapolaram ao pedir o cancelamento da mostra.

Meu propósito aqui, porém, é discutir a defesa que a autora faz de seu trabalho, da qual também não gostei. Acusada de recriar uma forma de "blackface", Loras diz: "Não é 'blackface'. Eu sou negra e, como artista, tenho direito de me expressar sobre o que está acontecendo na mídia".

Loras sustenta que pôde fazer esses retratos porque é negra. Isso significa que, se o autor fosse um homem branco, talvez com nome africânder, os mesmos rostos deixariam de ser arte e se converteriam em provocação racista? Terreno perigoso.

De minha parte, na tradição kantiana, penso que a obra de arte precisa gozar de certa autonomia. Para Kant, a arte independe de sua funcionalidade, sentido moral e até do artista ou da realidade. A arte verdadeira desponta como um jogo livre e nunca inteiramente resolvido entre a imaginação e o entendimento do espectador. O prazer surge quando se realiza uma finalidade, ou seja, quando imaginação e entendimento concordam. Mas, na estética, a imaginação não é limitada por conceitos. Há finalidade, mas sem um fim. A fruição de uma obra de arte é desinteressada (sem conceitos) e universal (de acordo com o entendimento).

É fácil usar esse instrumental kantiano para defender uma arte puramente formalista. Mas penso que também é possível utilizá-lo para diferenciar a Arte com "A" maiúsculo de meras mercadorias artísticas ou de peças de propaganda. Se estamos falando de Arte, ela vale por si, pouco importando a cor, o sexo e as filiações políticas do autor.


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