Folha de S. Paulo


Cegueira deliberada

SÃO PAULO - O político X pede uma contribuição para sua campanha à empreiteira Y e recebe. A movimentação é registrada como manda a lei. Suponhamos, porém, que o montante doado seja fruto de algum esquema de propina ou dos superfaturamentos que infestam as obras públicas, o que o torna "dinheiro sujo". O candidato que recebeu a ajuda cometeu ou não um delito?

Numa interpretação mais formalista, o político é inocente. Os quesitos que tornam a doação legal foram obedecidos e ninguém mostrou que nosso candidato tenha oferecido alguma contrapartida à empresa doadora. O problema com essa abordagem é que ela tornaria muito fácil a vida do político mal-intencionado. Para não caracterizar crime, bastaria que ele se cercasse de cuidados para não tomar conhecimento da origem do dinheiro, o que não é difícil. "Pecunia non olet" (dinheiro não tem cheiro), já ensinava Vespasiano.

Essa atitude é uma velha conhecida de nossos sistemas jurídicos, que, para combatê-la, desenvolveram a doutrina da cegueira deliberada ("willful blindness"). Por ela, o sujeito que age expressamente para manter-se ignorante de fatos que poderiam torná-lo partícipe de um crime comete esse delito. Um caso clássico é o do indivíduo que transporta um pacote com drogas e é apanhado. Mesmo que seja verdade, ele dificilmente se salvará alegando que levava a carga para um amigo e não perguntou o que havia em seu interior. Pela doutrina, ele deveria saber.

É um terreno pantanoso. Concordo que não podemos deixar a vida muito fácil para quem busca inimputabilidade bancando o avestruz, mas também é perigoso exigir das pessoas que se convertam em policiais, desconfiando de tudo e de todos.

O problema, no fundo, é que nossos sistemas judiciais se baseiam em intenções e resultados —e o cérebro desenvolveu uma notável capacidade de manter suas "intenções" escondidas até de si mesmo.

helio@uol.com.br


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