Folha de S. Paulo


Lula, Heidegger e a verdade

A Polícia Federal (PF) batizou de Aletheia a 24ª fase da Operação Lava Jato, que mira o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seus familiares. Segundo a PF, "aletheia" é "uma expressão grega que significa busca da verdade". Não é que isso seja uma inverdade, mas há aí algumas imprecisões que merecem maior desenvolvimento.

"Alétheia" (a palavra é paroxítona) é o termo grego mais trivial de que se dispõe para dizer "verdade". Em Homero, aparece sempre com o sentido de oposição a mentira. Aristóteles, na Metafísica (1011b), a define como "dizer que o que é é (`tò òn éstin´, para os familiarizados com ontologia), e que o que não é não é".

A noção de "busca" que a PF contrabandeou para a palavra grega tem origem não no Paraguai, mas na Alemanha, mais especificamente na filosofia de Martin Heidegger. Recorrendo à etimologia, o filósofo da floresta negra diz que o verdadeiro sentido de "a-létheia" é o de "des-velamento" ou até "des-esquecimento" ("léthe" é "esquecimento" em grego). Para Heidegger, é preciso ultrapassar as instâncias em que a verdade é só proposicional, como postulava Aristóteles, para buscar a verdade original do Ser, o que se dá pelo desvelamento do mundo ("Erschlossenheit"). É só aí que nós, humanos, realizamos nossa natureza. Achou confuso? É difícil mesmo –e não só devido à minha inabilidade para explicitar as ideias do pensador alemão.

De todo modo, ao projetar para a Operação Aletheia a noção de "busca", a PF se torna perigosamente heideggeriana. Não faço aqui referência às simpatias nazistas do filósofo. A PF, como toda polícia, é truculenta e, muitas vezes, comete arbitrariedades, mas seria despropositado compará-la à Gestapo. O que me inquieta tanto nos escritos de Heidegger como no comportamento da PF é o caráter místico-religioso que eles podem assumir. A atividade policial, como a filosófica, deveria, a meu ver, ser tão desapaixonada quanto possível.


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