Folha de S. Paulo


O mundo de Cunha

SÃO PAULO - Avançou esta semana na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara um projeto de lei do deputado Eduardo Cunha que prevê de um a três anos de detenção para quem "orienta ou instrui a gestante sobre como praticar aborto".

Se essa pérola for aprovada, estará criminalizada a divulgação de conhecimento científico. Médicos, ativistas e jornalistas não poderão mais dizer ou escrever que existem certos compostos, notadamente prostaglandinas como o misoprostol (conhecido no Brasil como Cytotec), que são capazes de provocar o aborto. Curiosamente, o próprio Cunha faz essa revelação na justificativa que escreveu para o seu projeto.

O PL 5.069 não é a única peça capitaneada pelo solerte deputado que busca criar sua sociedade de sonhos, que, para mim, são pesadelos. Ele também apoia o Estatuto do Nascituro, que equipara embriões congelados a criancinhas e lhes dá os mesmos direitos, o Estatuto da Família, pelo qual o casamento só vale se for de homem com mulher, e é autor do projeto que cria o Dia do Orgulho Heterossexual, que, embora não sirva para nada, é pelo menos engraçado.

Quanto mais leio sobre o cisma entre liberais e conservadores, mais me convenço de que estamos diante de visões de mundo com forte componente genético e que geram reações viscerais bastante resistentes a modificação. Quem percebe o aborto como direito da mulher não muda de ideia com facilidade, e quem o considera uma forma particularmente covarde de assassinato tampouco deixa de senti-lo como uma agressão.

Uma vez que não é realista esperar que um lado se dobre ao outro, só resta tentar desarmar o conflito. Na prática, isso implica, até por razões matemáticas, que, em sociedades multiculturais complexas como a nossa, é a posição liberal que deve prevalecer, já que ela autoriza cada grupo a viver segundo seus valores, enquanto a conservadora exige que a sua visão seja imposta aos demais.


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