Folha de S. Paulo


A Odebrecht existe?

SÃO PAULO - A pergunta do título pode parecer um delírio, mas este é um daqueles casos em que um pequeno mergulho metafísico pode revelar-se interessante. É óbvio que a companhia não só existe como emprega 180 mil funcionários e faturou, em 2014, R$ 108 bilhões em atividades em diversas áreas, da construção à petroquímica.

As coisas, porém, não são tão simples. Como ensina Yuval Hariri, uma firma é algo distinto tanto de seus empregados como de seus donos e também daquilo que realiza. Podemos imaginar um evento misterioso que matasse todos os funcionários da empresa baiana e ainda destruísse todos os seus bens e as obras que ela já executou. Seria uma catástrofe, mas não significaria necessariamente o fim da Odebrecht. Ela poderia emprestar dinheiro, contratar mão de obra e seguir construindo coisas.

Isso significa que a Odebrecht é imortal? Não. Toda empresa pode, em algum momento, falir, ser encerrada por seus proprietários ou fechada por decisão judicial. Mas, se algo assim acontecesse, os 180 mil funcionários continuariam existindo, bem como os bens da companhia.

O que chama a atenção aqui é que não parece haver uma conexão essencial da Odebrecht com o mundo físico. Ela é um exemplar daquilo que juristas chamam de ficções legais, entidades concretas o bastante para faturar bilhões, mas que só existem em nossas cabeças, já que não correspondem a nada no mundo físico.

A pergunta que fica é se essas ficções devem ser punidas quando envolvidas em delitos, ou se a sanção deve ser reservada às pessoas físicas que ordenaram ou permitiram os malfeitos. A tendência mais moderna do direito tem sido a de estender a possibilidade punitiva às empresas também na esfera penal. Dizem os entendidos que funciona. Pode ser, mas não consigo afastar a sensação de que fazê-lo é retroceder um pouco aos tempos em que se atribuíam faltas a bruxas, íncubos e súcubos.


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