Folha de S. Paulo


Laico, "ma non troppo"

SÃO PAULO - O Estado brasileiro é laico. Está na Constituição, mais precisamente no artigo 19, que proíbe o poder público de estabelecer cultos religiosos, subvencioná-los ou manter com eles relações de dependência ou aliança. Eu não poderia concordar mais com esse dispositivo, mas, como o mundo está longe de ser um lugar perfeito ou mesmo lógico, o preâmbulo da Carta invoca a proteção de Deus, o artigo 210 manda as escolas públicas de ensino fundamental oferecerem ensino religioso à criançada e o 150 torna as igrejas imunes a tributos.

Vale, então, refazer a questão: quão laico é o Estado brasileiro? Menos do que deveria. É verdade que poderia ser pior. Basta olhar para países como Arábia Saudita e Qatar, onde a "sharia", a lei muçulmana, é a base das legislações civil e penal. Na vizinha Argentina, é o contribuinte que paga os salários dos bispos católicos. E mesmo nações desenvolvidas não conseguiram se livrar inteiramente do jugo religioso. Na Alemanha e em países nórdicos, o Estado recolhe dízimo para as igrejas.

Se é tão difícil assim que Estados sejam verdadeiramente laicos, por que teóricos da democracia insistem tanto nesse ponto? O problema com as religiões reveladas é que elas trazem absolutos morais. Se a lei foi baixada pelo Altíssimo, só querer discuti-la já é uma ofensa contra o Criador. E utilizar absolutos na política, sejam religiosos ou ideológicos, é ruim porque eles a descaracterizam como instância de mediação de conflitos.

O remédio contra isso é a separação Estado-igreja. Ainda que se revele imperfeita na prática, ela facilita o uso da política como espaço da negociação e, mais importante, favorece a noção de que minorias têm direitos que devem ser preservados mesmo contra a maioria. Aqui, paradoxalmente, o laicismo se torna a principal força a proteger as religiões umas das outras. E Deus e são Bartolomeu são testemunha de que elas precisam dessa guarda.


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