Folha de S. Paulo


Flagelo de Deus

Já chamei aqui atenção para o potencial teologicamente daninho de catástrofes naturais, das quais o terremoto no Nepal é um exemplo. Bastam alguns segundos de movimentação das placas tectônicas para produzir doses avassaladoras de sofrimento humano. Como conciliar isso com a ideia de um Deus que é, ao mesmo tempo, onisciente, onipotente e benevolente?

Considerações desse gênero, que na filosofia levam o nome de problema da teodiceia (justiça divina), desafiam religiosos há mais de um milênio. Ao que parece, o primeiro a explicitar as dificuldades foi Epicuro (341 a.C.-270 a.C.), mas, desde então, o tema foi abordado por dezenas de filósofos, tanto teístas como ateus.

Se nos aferrarmos à lógica, é forçoso concluir que, se há um ente supremo, ele é menos poderoso do que se apregoa, ou não é tão bonzinho, ou então devemos negar (ou relativizar) a existência do mal. Esta última é a saída teologicamente mais produtiva. Ao contrário de Deus, nós não temos todas as informações e é possível que o que nos pareça um mal ou uma injustiça seja, na verdade, um meio para produzir um bem maior.

Nessa linha, uma defesa popular do Criador é a chamada teodiceia escatológica, que adia para a próxima vida o acerto definitivo de contas com a justiça. Ali, os bons receberão suas recompensas e os maus serão punidos, anulando assim o que hoje tem a aparência de iniquidade.

Engenhoso, mas receio que esse tipo de argumentação não convença no íntimo nem os próprios fiéis. Se eles estivessem tão convictos assim da justiça final, deveriam todos ansiar pela próxima vida. O que se verifica, porém, é que religiosos não parecem constituir uma categoria de pessoas com especial apetite pela morte. Meu palpite é o de que as ilusões da religião só afetam as áreas evolutivamente mais recentes do cérebro, deixando preservados os sistemas mais antigos, responsáveis pelo instinto de sobrevivência.


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