Folha de S. Paulo


Inimputáveis

SÃO PAULO - Virou lugar-comum imprecar contra a desumanização da medicina moderna, para a qual o paciente não passa de um número que tem de receber um diagnóstico e uma intervenção para gerar o pagamento. A reclamação procede, mas só até certo ponto.

Nada justifica que um médico, enfermeiro ou técnico seja grosso ou desatencioso para com o doente, mas é importante observar que o padrão linha de montagem, que está na origem do processo de desumanização, é o fator que mais contribui para melhorar a segurança e a eficácia dos procedimentos médicos.

Essa pelo menos é a tese do cirurgião e sanitarista norte-americano Marty Makary, autor de "Unaccountable" (inimputável). Para Makary, os dados mostram sem margem de dúvida que os hospitais e equipes que mais se especializam e mais padronizam seus procedimentos são os que apresentam menores taxas de erros e complicações. Se você já sabe qual é o seu problema, é muito melhor receber o tratamento num centro que realize milhares de intervenções semelhantes por ano do que num que faça apenas meia dúzia. Isso vale mesmo que o médico da primeira instituição seja um bruto, e o da segunda, seu melhor amigo.

Makary sustenta que o melhor modo de aperfeiçoar o sistema de saúde é apostar na transparência. A qualidade não avançou tanto quanto poderia nas últimas décadas porque o funcionamento dos hospitais é uma caixa-preta para o paciente, que não sabe como navegar pela rede. Se mais dados forem publicados e permitirem comparações justas, não apenas os doentes aprenderão a distinguir melhores de piores como as próprias instituições terão de se empenhar muito mais em melhorar. Se hoje podem se dar ao luxo de não fazê-lo, é porque são "inimputáveis".

Mesmo que não compremos as conclusões de Makary pelo valor de face, um pouco mais de transparência certamente não faria mal.


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