Folha de S. Paulo


A roupa nova do rei

SÃO PAULO - Nos últimos dias, muito se escreveu sobre a importância da liberdade de expressão e sobre como a sátira em especial não deve ser limitada pelos mandamentos do politicamente correto. Concordo em gênero, número e caso, mas acho que ficou faltando uma reflexão sobre a função social do humor.

Não sabemos muito bem por que o homem ri, mas o fato é que ele ri. Se formos procurar análogos do riso no comportamento de outros bichos, chegaremos às brincadeiras, frequentes entre filhotes de mamíferos. Ao que tudo indica, a brincadeira –quase sempre uma simulação de perseguições e lutas– funciona como uma espécie de adestramento para enfrentamentos reais.

O balanço é delicado. Para ser útil, o jogo tem de ser tão realista quanto possível, sem, entretanto, deflagrar um combate que resulte em danos maiores. No caso dos humanos, o humor resolve o dilema. Ao nos remeter para uma linguagem onde as coisas podem significar o contrário do que parecem, ele permite que nos aproximemos do "adversário" já sinalizando que o que soa como hostilidade é, na verdade, um gesto amigável.

Como, ao contrário dos outros mamíferos, humanos brincamos ao longo de toda a vida e não só de lutas, o poder do humor para azeitar as relações sociais não deve ser diminuído. Não é coincidência que as pessoas que costumam lançar bombas sejam fundamentalistas, isto é, gente que não ri e interpreta tudo literalmente. Eles parecem imunes ao humor.

Em sociedades mais complexas, o riso coletivo é capaz de sincronizar reações, o que o torna perigosamente subversivo. O paradigma aqui é a história de Hans Christian Andersen da roupa nova do rei. Na vida real, as piadas sobre as agruras do socialismo real no Leste Europeu permitiram que os cidadãos locais, sem correr riscos excessivos, indicassem uns aos outros que sabiam que o regime estava falido, o que contribuiu bastante para a queda do comunismo.


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