Folha de S. Paulo


Viva a avacalhação

SÃO PAULO - Qual o papel da religião islâmica no atentado contra o satírico "Charlie Hebdo"?

Seria ridículo imputar o ataque diretamente aos versos do Alcorão ou aos "ahadith", as palavras e os atos do profeta, que constituem, junto com o livro sagrado, a base da lei islâmica. Se há algo que a história humana é pródiga em ensinar, é que membros da nossa espécie nunca tiveram dificuldade de encontrar pretextos para massacrar o próximo. Se não dispomos de um motivo teológico, nos contentamos com razões mais mundanas, como cor da pele, tipo de vestimenta ou idioma utilizado.

Ainda assim, do mesmo modo que é precipitado atribuir o terrorismo à religião, é complicado exonerá-la por completo. Não é coincidência que a maioria dos atentados hoje parta de radicais muçulmanos. Será que há uma diferença entre o islamismo e o cristianismo ou o judaísmo?

Em termos puramente textuais, o Antigo Testamento apresenta passagens mais violentas do que o Alcorão. Ele ordena, por exemplo, que apedrejemos familiares que mudem de fé (Deut. 13:7) e que liquidemos os adúlteros (Deut. 22:22).

O ponto central é que, enquanto o ocidental típico nem sequer cogita de aplicar literalmente as injunções bíblicas, que são tratadas como alegorias, no mundo islâmico o cânon religioso goza de uma presença e uma respeitabilidade muito maiores.

A melhor coisa que aconteceu ao Ocidente nos últimos séculos foi ter se tornado, se não irreligioso, ao menos pouco zeloso nessa matéria. Essa oportuna avacalhação permitiu que as fogueiras inquisitoriais se apagassem e abriu caminho para sistemas políticos democráticos, que evitam erigir valores absolutos. É essa revolução laica que faz falta ao islã.

Entre os muitos elementos que contribuíram para esse movimento de dessacralização do mundo, destacam-se o humor e a sátira. É isso que torna o ataque ao "Charlie Hebdo" particularmente atroz.


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