Folha de S. Paulo


Civilização ou barbárie

SÃO PAULO - Se instituições fortes são importantes para assegurar que as sociedades se mantenham estáveis e resistam a ataques predatórios de "free riders", elas se tornam um problema quando o objetivo e eliminar um comportamento destrutivo que já esteja arraigado. É bem este o caso do trote universitário em geral e das denúncias de abusos sexuais e morais na Faculdade de Medicina da USP em particular.

Gostamos de pensar a medicina moderna como um feliz encontro do humanismo iluminista com o saber científico e a tecnologia do século 21, mas a verdade é que mesmo aí identificamos certos traços bárbaros de nossa espécie, como os ritos iniciáticos e a cultura da força que marcam os trotes e o tratamento dispensado aos calouros na faculdade paulista.

Curiosamente, quanto mais elitista a instituição, mais brutais tendem a ser os procedimentos. O trote na medicina e na engenharia costuma ser bem pior do que o dos cursos de letras ou de matemática. O mesmo fenômeno se repete nas unidades de escol dos militares.

É difícil acabar com esse tipo de cultura porque as próprias vítimas são muitas vezes participantes voluntários dos abusos. No afã de ser aceitos como membros plenos do grupo, calouros entregam-se entusiasmadamente aos trotes. Depois, quando veteranos, sentem-se no direito de reproduzir nos mais jovens os castigos que sofreram.

Os responsáveis pelas instituições, que teriam o dever legal de pôr fim às piores práticas, tendem a ser lenientes. Além de serem eles mesmos produto dessa cultura, tentam sempre preservar o nome da instituição, o que frequentemente exige fechar os olhos para coisas feias. A Igreja Católica vive o mesmo dilema em relação aos padres pedófilos.

Não importa, porém, quais sejam os impulsos ancestrais, no mundo de hoje essas instituições têm de fazer uma escolha entre a civilização e a barbárie. Voto na primeira.


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