Folha de S. Paulo


O sentido do dever

SÃO PAULO - Não sou do tipo revoltado. Pago impostos sem reclamar e respeito a legislação de trânsito. Sujeito-me a normas "pelo sentido do dever", que é a terminologia kantiana para indicar que costumo seguir regras por ver no sistema uma racionalidade e não apenas por medo das sanções legais.

Era com estoica resignação, portanto, que eu vinha até aqui comprando adaptadores para escapar à sina da troca das tomadas. Refresco a memória do leitor. Em 2009, o Conselho Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Conmetro) decidiu que o Brasil precisava padronizar e melhorar a segurança de suas tomadas e baixou resolução que estabelecia um cronograma para que fabricantes e o comércio se adequassem a um novo padrão, aquele de três pinos que formam uma curva leve, único no mundo.

A partir de 2011, já não era mais possível comprar nenhum equipamento com os pinos antigos, que cabem confortavelmente nas tomadas de quem tem casa construída antes da resolução.

O remédio foi recorrer aos adaptadores. Mas não é que, de uns meses para cá, se tornou muito difícil encontrar justamente o modelo de adaptador que faz com que plugues novos entrem em tomadas velhas? Segundo vendedores das lojas de utilidades, eles também foram banidos pelo Inmetro. O conselho desses valorosos comerciários, que segui, foi para montar uma gambiarra de dois ou três adaptadores ainda legais ou arrancar o pino terra com um alicate.

Meus aparelhos continuam funcionando, mas receio que a ideia do Conmetro de tornar as instalações elétricas mais seguras tenha se revelado um tiro pela culatra. Como o comportamento dos consumidores não era difícil de antecipar, fico me perguntando se o golpe das tomadas foi apenas uma boa intenção mal planejada ou um caso de ação entre amigos. Seja como for, minha confiança kantiana na racionalidade das normas sofreu leve eletrocussão.


Endereço da página: