Folha de S. Paulo


Balbúrdia teológica

SÃO PAULO - A bioética é a mais depressiva das especialidades filosóficas. Seus manuais são uma coleção de situações médicas trágicas que geram dilemas sem solução feliz. Se existe um princípio heurístico nessa triste disciplina, é o de que o respeito à autonomia do paciente e seus familiares é quase sempre a resposta menos ruim.

Faço essa introdução a propósito da decisão do Superior Tribunal de Justiça que livrou de ir a júri popular, isto é, de responder por homicídio doloso, o casal de pais que, por serem testemunhas de Jeová, não autorizou uma transfusão de sangue em sua filha menor, que morreu.

Penso que o STJ agiu bem. O que define primariamente o dolo no homicídio é a intenção de matar, o que, obviamente, não se era o desejo dos pais. De uns anos para cá, porém, o Ministério Público, provavelmente para obter condenações mais duras, vem abusando da figura do dolo eventual, que ocorre quando o acusado faz pouco caso do perigo a que submete a vítima. Esse, contudo, deveria ser um enquadramento excepcional, para dar conta de casos em que o autor não só age com negligência ou imprudência, mas o faz com real desprezo pela vítima. É bom que a Justiça comece a frear essa moda.

Não estou, é claro, afirmando que os pais agiram bem. Considero a ideia de que Deus não quer que transfundamos sangue uma tolice. Vou um pouco mais longe e afirmo que crer num papai do céu se encontra na mesma categoria. Mas, uma vez que nosso ordenamento jurídico permite e até incentiva a prática religiosa, é difícil sustentar que seguir um dogma equivalha a assassinato.

E, depois que se aceita o vale-tudo dos discursos religiosos, não dá para dizer que a crença num Deus com pavor de transfusões seja objetivamente mais errada do que numa divindade que veta a contracepção ou que coleciona prepúcios. Só a autonomia confere alguma coerência a essa balbúrdia sanitário-teológica.


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