Folha de S. Paulo


Fotos, macacos e deuses

SÃO PAULO - Segundo a Wikipedia, o direito autoral do autorretrato, o "selfie" para usar o termo da moda, que uma macaca fez com o equipamento que furtara de um fotógrafo pertence ao animal. A discussão surgiu porque David Slater, o dono da máquina, pedira aos editores da enciclopédia que retirassem a imagem por violação de direitos autorais.

Como piada, a argumentação da Wikipedia funciona bem. Receio, porém, que essa linha de raciocínio deixe uma fronteira jurídica desguarnecida. Se os direitos pertencem à macaca, por que instrumento legal ela os cedeu à enciclopédia?

Não são, entretanto, questiúnculas jurídicas que eu gostaria de discutir aqui, mas sim a noção de autoria. Obviamente ela transcende à propriedade do equipamento. Se a foto não tivesse sido tirada por uma macaca, mas por um outro fotógrafo com a máquina de Slater, ninguém hesitaria em creditar a imagem a esse outro profissional.

Só que não é tão simples. Imaginemos agora que Slater está andando pela trilha e, sem querer, deixa seu aparelho cair no chão, de modo que o disparador é acionado. Como que por milagre, a máquina registra uma imagem maravilhosa, que ganha inúmeros prêmios. Neste caso, atribuir a foto a Slater não viola nossa intuição de autoria, ainda que o episódio possa ser descrito como uma obra do acaso e não o resultado de uma ação voluntária.

A questão prática aqui é saber se o "selfie" da macaca está mais para o caso do fotógrafo que usa a máquina de outro profissional ou para o golpe de sorte. E é aqui que as coisas vão ficando complicadas. Fazê-lo implica não só decidir quanta consciência devemos atribuir à símia mas também até que ponto estamos dispostos a admitir que nossas vidas são determinadas pelo aleatório. E humanos, por razões evolutivas, temos verdadeira alergia ao fortuito. Não foi por outro motivo que inventamos tantos panteões de deuses.


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