Folha de S. Paulo


Obscurantismo judicial

SÃO PAULO - Às vezes tenho a impressão de que não saímos do século 16, quando ainda era razoável acreditar em magia natural, a noção de que analogias, simpatias e a invocação de palavras encerram o poder de transformar o mundo.

Digo isso a propósito do belo artigo "As duas portas do SUS", de Octávio Ferraz e Daniel Wang, publicado na quinta passada (19). Como os autores mostraram com brilhantismo, custos impagáveis estão sendo impostos ao SUS por causa de uma interpretação exótica que o Judiciário dá ao artigo 196 da Constituição, que reza: "A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante (...) acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação".

Em vez de compreender o dispositivo como uma norma programática, isto é, como declaração de princípios e meta a ser perseguida, o Judiciário de forma mais ou menos consistente o tomou como mecanismo de aplicação imediata com efeitos concretos. Assim, passou a obrigar os entes federativos a pagar toda espécie de tratamento para quem entrasse com uma ação judicial, não importando os custos nem a comprovação científica da terapia em questão.

Na prática, magistrados agem como os magos do século 16, para os quais bastava pronunciar as palavras certas para que o prodígio ocorresse. No caso, seria só proferir o mantra "dever do Estado" para assegurar que os recursos se materializassem.

O problema, para nós que já deixamos o Renascimento para trás, é que não existe magia natural. Assim, se o juiz determina que determinado paciente seja atendido, ele está, ainda que não o veja, privando outros cidadãos de beneficiar-se das verbas da saúde, que são, infelizmente, finitas. E fazê-lo significa tirar das autoridades sanitárias a capacidade de traçar políticas que beneficiem o maior número possível de pessoas. É exatamente o contrário do que chamaríamos de atitude racional.


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