Folha de S. Paulo


O candomblé e o tinhoso

SÃO PAULO - Numa decisão para lá de polêmica, o juiz federal Eugênio Rosa de Araújo, da 17ª Vara Federal do Rio, indeferiu pedido do Ministério Público para que fossem retirados da rede vídeos tidos como ofensivos à umbanda e ao candomblé. No despacho, o magistrado afirmou que esses sistemas de crenças "não contêm os traços necessários de uma religião" por não terem um texto base, uma estrutura hierárquica nem "um Deus a ser venerado".

Para mim, esse é um belo caso de conclusão certa pelas razões erradas. Creio que o juiz agiu bem ao não censurar os filmes, mas meteu os pés pelas mãos ao justificar a decisão.

Ao contrário do Ministério Público, não penso que religiões devam ser imunes à crítica. Se algum evangélico julga que o candomblé está associado ao diabo, deve ter a liberdade de dizê-lo. Religiões, como qualquer outra instituição ou pessoa, poderiam reclamar proteção contra inverdades factuais. O problema aqui é que a teologia trafega num reino da fantasia sem muito conteúdo empírico, o que torna difícil decidir o que corresponde ou não a fatos. Como não podemos nem sequer estabelecer se Deus e o demônio existem, o mais lógico é que prevaleça a liberdade de dizer qualquer coisa.

Não consigo, porém, nem imaginar tentativa mais canhestra do que a do magistrado de determinar o que é uma religião. Ela exclui a maior parte dos fenômenos religiosos, já que a esmagadora maioria dos sistemas de crenças documentados pelos antropólogos não conta com texto sagrado nem estrutura hierárquica. Em muitos deles, é preciso fazer força para enxergar a noção de um deus.

Não sei até se o juiz não viola a lei ao deixar de reconhecer a umbanda e o candomblé como religiões. O § 1º do art. 44 do Código Civil, afinal, reza: "São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento (...)".


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