Folha de S. Paulo


Limites do legalismo

SÃO PAULO - Como ainda estou levando pauladas por ter defendido que a Lusa não fosse rebaixada, apesar de a aplicação mecânica do regulamento determinar o contrário, acho que vale desenvolver melhor o tema. Cumprir a lei em todas as ocasiões nos levaria a um mundo melhor?

Especialmente no Brasil, onde normas nunca foram levadas muito a sério, nosso impulso natural é pensar que sim. Infelizmente, isso não é verdade. Tanto por razões teóricas como práticas, o legalismo estrito é uma posição incoerente. Isso, aliás, não deveria ser surpresa nem incomodar aqueles com ideias mais conservadoras, já que, a crer na tradição, um dos primeiros a denunciar o formalismo legal foi Jesus Cristo.

O problema de fundo é matemático. É impossível traduzir para um conjunto finito de regras discretas (as leis) a totalidade dos comportamentos que desejamos promover.

O resultado é que a aplicação até das normas mais necessárias não pode ser desvinculada do contexto em que ocorre, sob pena de produzir injustiças. Um caso relativamente simples, como o de não enquadrar o sujeito que cede um comprimido para o colega com dor de cabeça em algum artigo do Código Penal, exige familiaridade com um amplo conjunto de regras não escritas de sociabilidade que chamamos de bom senso.

Mesmo que fôssemos capazes de contornar essa dificuldade estrutural, ainda restaria a questão prática da hierarquização. Em tese, autoridades são obrigadas a reprimir sem distinção tanto o assassinato como o bingo ilegal nos fundos da igreja. No mundo real, porém, é preciso estabelecer prioridades, o que exige fechar os olhos para uma série de violações.

Gostemos ou não, definir as situações em que devemos ignorar leis é tão importante quanto aplicá-las. Se não fosse assim, poderíamos substituir os juízes por iPads com um software que decidiria a pena a partir de uma descrição do caso. Poucos gostariam de ser julgados dessa forma.


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