Folha de S. Paulo


O fim dos peixes

Ciência e senso comum nem sempre andam de braços dados, mas os biólogos às vezes exageram. Não satisfeitos em ressuscitar os dinossauros, que agora passam diariamente em nossas janelas na forma de passarinhos, eles também extinguiram os peixes. Sim, você leu bem. Para a cladística, que é o ramo da biologia que organiza os seres vivos com base em suas relações filogenéticas, os peixes não constituem uma categoria. Achou pouco? Bem, eles também eliminaram as mariposas e as zebras. Nem ouso perguntar o destino do pobre peixe-zebra.

Brincadeiras à parte, esse divórcio entre o que nos diz a ciência e o que clamam nossos instintos mais básicos lança luzes tanto sobre os rumos da investigação científica como sobre nossa natureza. Um livro notável, que me foi recomendado pelo amigo André Nemésio, trata bem dessas questões. É "Naming Nature: The Clash Between Instinct and Science" (nomeando a natureza: o choque entre instinto e ciência), da bióloga Carol Kaesuk Yoon.

Transitando entre a história da taxonomia, a neurologia clínica e a antropologia linguística, Yoon defende a tese ligeiramente paradoxal de que tanto a ciência como o senso comum estão corretos. No final das contas, peixes existem, ainda que mais em nossas mentes do que numa suposta organização geral da natureza.

O ponto fraco do livro é o final, onde Yoon, com um fervor quase religioso, prega que o distanciamento entre os cidadãos de um mundo cada vez mais urbanizado e a natureza é um fator-chave na verdadeira extinção em massa que está em curso. Não é que as espécies não estejam desaparecendo num ritmo preocupante, mas é complicado ligar isso a uma suposta falta de interesse sem apresentar evidências empíricas. Deixemos, porém, isso para lá e nos concentremos nas partes boas de "Naming Nature", que são muitas.

Para começar, um pouco de taxonomia, a ciência que lida com a descrição, identificação e classificação dos organismos. Em sua forma moderna, ela foi inaugurada por Carolus Linnaeus (1707-1778), que conseguiu imprimir um pouco de ordem ao caos. Ele nos legou não apenas os familiares nomes científicos binomiais, como Homo sapiens, que resistem há mais de 200 anos, como também a hierarquia em os seres devem ser colocados: reino, filo, classe, ordem, família, gênero espécie (dica mnemônica que funciona em inglês: king Philip came over for great sex).

Apesar dos esforços de Lineu, a taxonomia ainda tinha muito mais de arte do que de ciência. Ele próprio se destacava por classificar espécimes fiando-se em instintos, ou, para utilizar um vocabulário mais técnico na "umwelt" ("mundo circundante" em alemão), que é o nome que os biólogos dão à forma particular pela qual cada espécie vê e interpreta seu ambiente. Lineu superava seus contemporâneos porque percebia semelhanças entre plantas e bichos que seus rivais não eram capazes de enxergar.

Na verdade, a taxonomia lineana se baseava justamente em ordenar os organismos com base em similitudes inscritas em nossos instintos. O que nada é peixe; o que voa é ave. E os casos controversos a gente resolve individualmente.

No século 19, porém, entra Darwin e tudo muda. O principal é que, com a teoria da evolução, as espécies deixam de ser fixas. O Homo sapiens não surgiu pronto no sexto dia da criação, mas evoluiu a partir de outras espécies do gênero Homo, o qual, por sua vez, veio de outros primatas, que... até chegar na vida terrestre primordial.

À primeira vista, essa revolução sabota a própria ideia de taxonomia. Se o que queremos classificar está em constante mudança, no que poderíamos nos fixar para estabelecer critérios?

Mas este é um daqueles casos em que o enigma engendra sua própria solução. Já que é a evolução que gerou a exuberância de seres vivos com que nos deparamos, o critério para classificá-los deve ser evolutivo: espécies que divergiram mais recentemente devem ser catalogadas juntas, como representantes do mesmo gênero e daí pulamos para a família, ordem, classe... A partir daí, podemos montar uma imensa árvore genealógica que engloba toda a criação. É nisso que deve constituir a boa taxonomia, que sai da caprichosa "umwelt" e pode tornar-se científica.

E os desenvolvimentos não pararam em Darwin. O advento de métodos estatísticos, bioquímicos e de genética molecular mudaram significativamente o panorama da área, que passou a dispor de elementos mais objetivos do que as intuições de Lineu para hierarquizar as espécies. O que Darwin vislumbrara no século 19 poderia enfim tornar-se realidade. Em meados do século 20, Willi Hennig propõe a cladística, que agrupa itens tomando por base o critério de características partilhadas que estão presentes no último ancestral comum das duas espécies, mas não em parentes mais distantes.

É aí que morrem os peixes. Em impossível juntá-los todos numa categoria sem colocar seres estranhos no meio do bolo. Um caso emblemático é o dos dipnoicos, também conhecidos como peixes pulmonados. Olhando para eles, não há dúvida de que são peixes. Nadam e se comportam como um. Só que eles também têm pulmões e, evolutivamente falando, são parentes mais próximos das vacas do que de outras ordens íctias como o salmão. Assim, se o cladista quiser a todo custo manter os peixes como uma categoria válida, teria de nela incluir vacas e todos os seres portadores de pulmões, nós inclusive. Obviamente, faz mais sentido sumir com os peixes.

Relutamos, entretanto, em fazê-lo. E o motivo é que temos dificuldade para pensar contra nossa "umwelt". Passamos as últimas dezenas de milhares de anos tratando peixes como uma categoria real --e pescando-os e com eles nos fartando. A palavra existe em todas as línguas conhecidas. E, no que pode ser algo muito mais profundo, nossos cérebros parecem ter módulos específicos para pensar a natureza segundo padrões mais ou menos pré-definidos.

O antropólogo Brent Berlin mostra que somos relativamente competentes para identificar nomes de pássaros em línguas de tribos que nem suspeitávamos existir, como os huambisas do Chile. Se submetermos estudantes universitários a pares de palavras em huambisa nos quais um dos elementos é uma ave e o outro um "peixe" (a partir de agora acho melhor usarmos aspas), verificaremos que eles acertarão bem mais do que os 50% esperados se as escolhas fossem totalmente aleatórias. Como?

A resposta está no som. Tomemos um dos pares de Berlin: "takáikit" e "teres". A esmagadora maioria das pessoas marca o primeiro como pássaro. Os fonemas da palavra parecem carregar uma onomatopeica passaridade que nossos cérebros não têm muita dificuldade para reconhecer.

Mais eloquente ainda é o caso dos pacientes neurológicos. A literatura registra hoje um número razoável de pessoas que, devido a doenças ou traumas, perderam a capacidade de reconhecer seres vivos, mantendo intactas suas outras habilidades cognitivas, incluindo o reconhecimento de objetos inanimados. Há também o movimento-espelho, de gente que deixa de visualizar coisas inanimadas, conservando a percepção de viventes.

Em boa parte dessas situações, o que deflagra a cegueira para com seres vivos é uma encefalite herpética que provoca lesões no lobo temporal, mais especificamente o sulco temporal superior e o giro fusiforme lateral. Se a dificuldade é só com objetos, as estruturas mais comumente comprometidas são o giro temporal médio e o giro fusiforme medial.

Seja qual for a causa, o resultado é que a "umwelt" fica de algum modo chamuscada. E, a crer no impacto devastador que essas lesões têm sobre a vida do paciente, não parece exagero afirmar ela de algum modo define nossa humanidade.

Ao que tudo indica, viemos de fábrica com uma notável capacidade de nos interessar por seres vivos, reconhecê-los, nomeá-los e categorizá-los. E isso faz todo o sentido do ponto de vista evolutivo, já que esses organismos são nossa comida e por vezes nós a deles.

Voltando à pergunta inicial, o que dizer dos "peixes"? Eles existem ou não? Não vejo muito como fugir da solução de Yoon. Não dá para negar estatuto de realidade a algo que está tão fortemente impregnado em nossas mentes. O cérebro praticamente clama para que vejamos "peixes" como peixes. Daí não decorre que precisemos obrigar a ciência a operar apenas com categorias naturais. Aliás, não há nada menos natural do que léptons, prótons e quarks, mas os físicos não têm dificuldade de trabalhar com eles. A biologia, assim, está certa em buscar as definições que melhor sirvam a seus propósitos e enveredar pelos caminhos que surgirem sem se preocupar muito com nossas sensibilidades. A discussão lembra um pouco a que ocorreu no rebaixamento de Plutão, que teve seus direitos planetários cassados e tornou-se um mero planetoide. Lá como cá, o divórcio entre senso comum e precisão científica gera um certo estranhamento, mas logo aprendemos a viver com isso.

Uma questão interessante para especular é: existe um ponto em que devemos abandonar teorias que aparentam solidez para ficar com nossas intuições? Como já coloquei numa coluna mais antiga, se seguirmos teorias físicas elegantes e bem estabelecidas ao pé da letra, temos de aceitar a existência de universos paralelos, o que obviamente fere nosso senso de realidade. A saída fácil é afirmar que precisamos aguardar por evidências empíricas de que esses mundos de fato existem. Concordo em boa parte, mas, como lembra o físico Brain Greene, defensor da realidade desses universos, não existe ideia mais contraintuitiva do que a de que a Terra se move em altíssima velocidade em torno de seu próprio eixo e também do Sol. Afinal, o que vemos é o Sol cruzando os céus e não sentimos estar em movimento. Foram a ciência e a matemática de Copérnico e Galileu que nos levaram ao paradigma heliocêntrico, que hoje não recebe contestação. Evidências empíricas mais diretas de que o heliocentrismo é real tiveram de esperar por instrumentos sofisticados que só surgiram séculos depois.

Existindo ou não "peixes", essa é uma boa questão para pensar à noite.


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