Folha de S. Paulo


Ciência e preconceito

Existem raças humanas? O grau de inteligência varia entre grupos étnicos? Um povo é melhor do que outro? Essas são perguntas difíceis, admito, e as respostas, se é que existem, podem ser ainda piores.

Evitamos esse tipo de questão por motivos nobres. A experiência histórica ensina que a combinação de estereótipos raciais e ambições políticas pode ter consequências terríveis, repugnantes mesmo. Mas, se nosso objetivo é conhecer o mundo como ele, não como gostaríamos que fosse, não deveríamos nos deter diante de perguntas cujas respostas podem nos desagradar. Se essas perguntas levam à formulação de hipóteses em princípio falseáveis e ao alcance de testes empíricos, temos na verdade o dever de seguir com a investigação. Deixar de fazê-lo seria o equivalente sociológico de não realizar o exame de sangue para não correr o risco de descobrir uma hipercolesterolemia ou outro problema de saúde.

Faço essas considerações a propósito da reação a duas colunas que escrevi para a edição impressa da Folha. A primeira, Demografia do Nobel, saiu no último dia 10, e a segunda, O mundo como ele é, três dias depois. Confesso que preparei as peças munido de real "animus cutucandi". Misturei deliberadamente Dawkins, muçulmanos, judeus, inteligência, religião e ateísmo, que são nitroglicerina jornalística. Mas, eterno otimista que sou, esperava ter de responder apenas pelo que afirmei, não por ilações construídas a partir de elementos externos aos textos.

Comecemos, então, pelo que eu não disse. Nunca propugnei pela supremacia judaica nem sentenciei que islâmicos são todos ignorantes. Tampouco sustentei que a genética explica todas as características humanas ou que a religião necessariamente torna as pessoas burras.

Isto esclarecido, passemos ao que eu efetivamente disse. Na primeira coluna, aproveitei a provocação de Dawkins aos muçulmanos e a ampliei, introduzindo os judeus e comparando desempenhos em relação ao prêmio Nobel. Enquanto islâmicos receberam 10 láureas (1,2% do total), judeus, nas contas da "Encyclopaedia Judaica", ficaram com 187 (22%). A diferença fica ainda maior quando se considera que os muçulmanos representam 23% da população mundial e os judeus, apenas 0,2%.

A partir dessa constatação, fiz apenas e tão somente duas proposições:

1) Estamos diante de uma anomalia estatística que merece estudo;
2) É difícil fazer pesquisas nessa área, sobretudo quando incluem hipóteses biológicas, porque ela é ideologicamente carregada.

Na segunda coluna, mencionei um estudo (na verdade uma metanálise) publicado na véspera, que afirma existir uma correlação negativa entre habilidades cognitivas e grau de crenças religiosas. Aproveitei o gancho para lembrar que:

1) Posições liberais e contra a intolerância em geral devem sustentar-se em juízos morais, não em supostas propriedades da natureza.

Exploremos um pouco melhor os pontos levantados. O número de prêmios Nobel recebidos por judeus é desproporcional. Esse é um dado difícil de contestar. Podemos levantar um número quase infinito de hipóteses para explicar o fenômeno. A mais popular é, sem sombra de dúvida, a da educação. Judeus se sairiam bem na academia porque têm uma tradição milenar de estudo. Como essa é uma causa de origem ambiental que ainda fortalece o papel do ensino, é aprovada por todos quase automaticamente. É perfeitamente possível e até provável que esse seja um fator, mas daí não decorre que não existam outros.

Há também quem prefira afirmar que o prêmio Nobel é essencialmente político e não tem nada a ver com inteligência. É inegável que o galardão tem sua dimensão política. Ela é especialmente forte (por definição) na premiação da Paz, um pouco menos na Literatura e menos ainda nas áreas científicas. Embora prestígio, indicações e conexões sociais sempre estejam a operar, a Academia Real de Ciências da Suécia e o Instituto Karolinska, que definem os ganhadores dos Nobel científicos, não são exatamente a Academia Brasileira de Letras. Para receber o galardão é preciso ter produzido uma obra importante (pelo menos sob os parâmetros da época em que foi selecionada). Apesar de um ou outro erro histórico, não é para qualquer um.

De toda maneira, judeus se saem bem também em outros indicadores de inteligência. Como escreveu Steven Pinker num artigo de 2006, "embora nunca tenham excedido 3% da população americana, judeus respondem por 37% das Medalhas Nacionais de Ciência dos EUA, 25% dos Nobel em Literatura recebidos por americanos e 40% dos vencedores de Nobel de Ciências e de Economia do país. No palco mundial, 54% dos campeões mundiais de xadrez tinham um ou dois genitores judeus".

Em termos de QI, o índice médio dos judeus "ashkenazim" (mais abaixo vou explicar o que é isso) fica entre 108 e 115, o que representa algo entre meio e um desvio-padrão acima da média. Não é nada astronômico, o que significa que existe um bom número de judeus burros. A pegadinha é que uma diferença moderada na média se traduz em diferenças ainda maiores na cauda. Como explica Pinker, se em dois grupos do mesmo tamanho a turma A apresenta uma diferença de um desvio-padrão (15 pontos) na média em relação a B, então haverá 3 vezes mais representantes de A do que de B na população de pessoas com QI maior ou igual a 115. Mas, se formos procurar entre os que têm QI maior do que 160, isto é, a categoria dos Einsteins, haverá 42 membros de A para cada representante de B.

Outros críticos preferem simplesmente negar relevância aos testes de QI e ao próprio conceito de inteligência geral (g). É perfeitamente legítimo e provavelmente útil postular outros tipos de inteligência e tentar mensurá-las. Mas seria necessário um mar de evidências para derrubar o QI. Após mais de cem anos de mensurações e testes práticos, é quase consensual entre psicometristas e psicólogos clínicos que o teste tem validade. Há boa correlação entre QI, em suas variadas formas de aferição, e características como desempenho acadêmico, sucesso profissional, renda, saúde e até taxa de divórcio (caso em que a correlação é negativa). Pode não servir como um retrato perfeito de cada indivíduo em particular, mas no agregado funciona bastante bem.

Voltando às nossas hipóteses, causas ambientais como a da tradição do estudo, ou a das "Yiddishe Momme", são relativamente fáceis de aceitar. A porca torce o rabo quando alguém evoca uma explicação biológica, como fizeram Gregory Cochran, Jason Hardy, Henry Harpending, da Universidade de Utah, em 2005, ao publicar "Natural History of Ashkenazi Intelligence", e, mais recentemente, Charles Murray e Richard Lynn com trabalhos na mesma linha.

Antes de continuar, é preciso abordar uma outra crítica comum que é a de que judeus não constituem uma raça. De fato, não constituem. Judeus vêm em todos os formatos e sabores, dos judeus com origem na Europa Central, conhecidos como "ashkenazim" (que significa "alemães" em hebraico), aos que vieram da península Ibérica ou "sepharadim" (espanhóis), passando pelos judeus etíopes, iemenitas, persas, sem mencionar os convertidos.

Os trabalhos que trazem hipóteses genéticas tratam sempre dos "ashkenazim". São eles que se saem especialmente bem nos Nobel e nos demais indicadores de inteligência. Mais importante, constituem um grupo étnico bastante característico, marcado por muitos casamentos consanguíneos e nos quais é anormalmente alta a frequência de doenças genéticas como Tay-Sachs, Gaucher e a mutação deletéria no gene BRCA1. Igualmente interessante, as duas primeiras moléstias afetam o metabolismo dos lipídeos, mais especificamente o armazenamento dos esfingolípideos que, em modelos animais, se mostraram associados ao crescimento neuronal.

Se isso basta para cartacterizar uma raça é questão aberta a debates (e que debates!). De um lado, há cientistas, encabeçados pelo biólogo Richard Lewontin, que sustentam que raças são meras construções sociais, fruto da imaginação de nossas mentes essencialistas sem significado biológico ou taxonômico. Do outro lado, estão autores como Anthony Edwards e Richard Dawkins, para os quais as categorias raciais têm algum valor informativo, já que existe correlação entre a frequência dos diferentes alelos de um gene numa população e a sua distribuição geográfica.

Não faria muito sentido falar em raça negra ou branca, já que são supercategorias que incluem um número muito grande de grupos, mas, se pensarmos em "ashkenazim" ou zulus, ou hausas e demais populações que tenham se mantido em relativo isolamento por alguns séculos, a coisa talvez mude de figura.

Bem, a hipótese polêmica aventada por Cochran e colaboradores é a de que as moléstias típicas dos "ashkenazim" são subproduto de genes que foram mantidos ao longo da história evolutiva do grupo porque foram selecionados por aumentar a inteligência. E, especialmente para os judeus europeus, que só podiam exercer determinados ofícios como o de banqueiros, comerciantes e intermediários, a inteligência tinha valor adaptativo.

A tese é controversa e pode estar certa ou errada. Mas ela é específica o suficiente para ser testável e, daí, corroborada ou falseada. Como observa Pinker, bastaria pegar um número grande de pares de irmãos em que um tenha a doença e o outro não e ver se o portador da moléstia (homozigoto) se sai melhor nos testes de inteligência. Se ele for mais burro, a hipótese será rejeitada.

E o problema é justamente que esse tipo de estudo é tabu. Desperta reações tão veementes que jovens talentos da psicologia, das ciências sociais e da genética preferem dedicar-se a áreas mais tranquilas. E não dá para recriminá-los por desejar uma carreira longa e segura.

Essa penumbra que paira sobre o assunto não tem muita razão de ser. Mesmo que concluamos que judeus e populações do leste da Ásia têm um QI superior ao do de outros grupos por razões biológicas, o que isso significa?

Não muito. É engraçado como não fazemos objeção a um juízo do tipo: negros são em média mais altos do que japoneses, mas basta alguém sugerir que os asiáticos tenham uma inteligência média superior à do grupo de ascendência africana para desencadear uma revolução. Só que médias são um conceito traiçoeiro. Representam um valor obtido a partir resultados válidos para vários indivíduos, mas que não podem ser extrapolados a nenhum indivíduo em particular. Homens são em média mais altos do que mulheres, mas não temos nenhuma dificuldade para encontrar uma mulher em particular mais alta do que vários homens. Na média, a humanidade tem um testículo e um seio.

O argumento contra o racismo, o sexismo e outras formas de intolerância deve ser moral e não natural ou científico. Vamos supor que eu justifique a não discriminação contra gays com base na "evidência científica" de que o homossexualismo tem componentes genéticos e ambientais, não sendo, portanto, uma escolha que possa ser modificada. Imagine-se agora que alguém demonstre de forma insofismável que tais evidências estavam erradas. O que ocorre neste caso? A discriminação fica legitimada?

É errado prejulgar pessoas, de todas as cores e orientações sexuais, religiosas ou filosóficas, pela prosaica razão de que não gostaríamos de sofrer tal tratamento se estivéssemos em seu lugar, não porque a igualdade esteja inscrita na natureza. Não está. E o bônus adicional de aceitar essa regrinha, que Kant batizou de imperativo categórico, é que ficamos livres para investigar.

PS - Não poderei escrever a coluna on-line da próxima quinta-feira, 29/8.


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