Folha de S. Paulo


De meios médicos e médicos inteiros

Médicos não gostaram da minha coluna de 15/5, em que afirmei que as críticas da categoria ao plano do governo de importar 6.000 profissionais de saúde cubanos tinham muito de corporativismo.

Se eu resumo bem o teor das mensagens que recebi, a maioria dos missivistas concordou com os primeiros parágrafos de meu texto em que eu dizia que a proposta da administração dificilmente trará os resultará esperados, já que o problema das cidades mais afastadas não é apenas a falta de médicos, mas, sim, de uma estrutura sanitária minimamente adequada, mas rejeitou vivamente a parte final, na qual sustentei que os cubanos podem servir como um paliativo. Uma frase que causou espécie foi: "Num raciocínio bem consequencialista, é melhor para o sujeito que procura um serviço de saúde ser atendido por alguém que tenha algum conhecimento do que ficar sem assistência nenhuma".

É esse o ponto que pretendo discutir hoje de modo mais detido. Meio médico é ou não melhor do que nenhum médico?

Toda a argumentação dos conselhos e associações médicas é a de que seria um tremendo de um erro admitir profissionais menos qualificados, como fica claro no artigo de Roberto Luiz D'Avila, presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), que a Folha publicou no sábado. Vale observar que essa linha de raciocínio não está limitada ao caso dos cubanos, mas permeia o discurso da categoria em praticamente todas as discussões que envolvem profissionais de outras carreiras. A polêmica em torno da lei que regulamenta o ato médico é um retrato perfeito dessa disputa. Basta sugerir que enfermeiras devam realizar partos, que optometristas sejam autorizados a receitar óculos e fonoaudiólogos tenham o direito de diagnosticar distúrbios na fala para que os médicos se armem de escalpelos e boticões e lancem impropérios contra os proponentes de tais ideias. Um dos ataques favoritos é acusá-los de defender uma medicina para pobres (exercida por não médicos) e outra para ricos (feita por médicos). Em seguida, perguntam quem você gostaria que prestasse o atendimento, caso o paciente fosse alguém de sua família.

Manobras retóricas à parte, o ideal é ser sempre atendido por um profissional bem treinado, que siga com bom senso e espírito crítico os protocolos estabelecidos e se mostre empático, seja ele médico, enfermeiro, psicólogo, fonoaudiólogo, fisioterapeuta, optometrista etc.

A ideia, cultivada com tanto esmero pelo CFM, de que basta ser médico para ser dono de um saber diferenciado, completo e salvador pode até ser compatível com a narrativa heroica que todas as categorias profissionais gostam de atribuir a si mesmas, mas esbarra numa série de dificuldades práticas e, principalmente, epistemológicas. Vamos a elas.

Em princípio, não seria absurdo exigir que os cubanos ou qualquer outro médico disposto a atuar no Brasil passe por um processo de certificação como o Revalida, o exame do Ministério da Educação para reconhecer diplomas emitidos fora do Brasil. Na edição de 2012, apenas 77 dos 884 candidatos (8,71%) foram aprovados. No ano anterior, haviam sido 9,6%.

O problema aqui é que estamos cobrando dos estrangeiros algo que não exigimos dos médicos formados por aqui mesmo. Pelas regras atuais, basta ser aprovado em curso regular reconhecido pelo MEC para ter o direito de exercer a medicina. Como os estudantes que concluem a graduação no Brasil não fazem o Revalida, não sabemos como eles se sairiam. Existem, contudo, outros testes e eles não pintam um quadro muito otimista.

Desde o ano passado, o Cremesp obriga todos os recém-formados a realizar uma prova de conclusão. O exame não tem caráter eliminatório, de modo que o aluno, se não quiser, não precisa se esforçar para ir bem. Em 2012, 54,5% dos quase 2.500 graduandos do Estado de São Paulo não acertaram 60% dos testes.

E vale notar que estudantes que acabaram de concluir o curso estão com a matéria relativamente fresca na cabeça. Se fôssemos pôr à prova também os médicos um pouco mais velhos, que tenham se fixado numa especialidade qualquer e já tenham esquecido tudo o que não usam, os resultados provavelmente seriam bem piores.

A verdade é que, na prática, o saber totalizante, que integra conhecimentos de várias especialidades através de um raciocínio clínico rápido e preciso, não é uma característica exigida de todos os médicos o tempo todo.

Em grande parte das ocasiões, médicos atuam segundo protocolos mais ou menos estruturados que têm o objetivo de fazer com que o profissional não pense demais. E é bom que seja assim. O generalista precisa guiar-se pelas doenças que são mais comuns naquela faixa etária e naquela região e não imaginar todas as moléstias possíveis que sejam compatíveis com aqueles sintomas e tentar excluí-las através de caros exames específicos.

Temos de agradecer a Apolo e a Asclépio sempre que a medicina consegue empacotar numa rotina qualquer um conjunto específico de ações aplicáveis a um certo número de casos semelhantes. É claro que, por vezes, surgirão situações em que um paciente será vítima desses esquemas mais rígidos, mas, se eles foram bem elaborados, salvam mais vidas do que provocam problemas. E é evidente que tudo aquilo que vem na forma de uma rotina precisa pode ser facilmente ensinado a qualquer um. Paradoxalmente, quanto melhor a medicina funciona, menos o médico é necessário (pelo menos no que diz respeito ao problema que foi coberto pela rotina). Não é uma coincidência que sejam os pragmáticos norte-americanos os que mais transferem tarefas dos médicos para outros profissionais como enfermeiros e paramédicos. Alguns tipos de enfermeiro podem até receitar drogas ali.

Passemos agora ao plano epistemológico. Não há dúvida de que a medicina faz hoje coisas que pouco tempo atrás seriam classificadas como milagres. Cânceres antes fatais se tornaram controláveis, cardiopatas que se sujeitam ao tratamento conseguem décadas de sobrevida, algumas de nossas drogas funcionam de verdade. Há avanços importantes em praticamente todas as especialidades e seria ocioso mencioná-los um a um. O impacto estatístico dessas conquistas, porém, empalidece diante de um conjunto de quatro medidas extremamente eficazes que respondem pela maior parte do salto na expectativa de vida que a humanidade experimentou nos últimos 100 anos.

Com efeito, no início do século 20, a esperança de vida ao nascer de um terrestre médio era de apenas 31 anos e chegou a 67 anos em 2010. Isso foi obtido principalmente devido à brutal redução na mortalidade infantil, que despencou da casa das duas centenas por mil nascidos vivos para pouco mais de quatro dezenas hoje (média mundial). E a criançada parou de morrer graças a saneamento básico, vacinas, antibióticos e o controle de vetores. Se quisermos encompridar a lista, vale citar derivações dessas quatro medidas, como a propagação de noções de higiene e o cuidado com infecções e parasitas.

Apesar dos inegáveis ganhos da medicina, a verdade é que ela ainda caminha em terreno epistemologicamente pantanoso. Exceto por umas poucas medidas de eficácia extrema, como as que levaram à redução da mortalidade infantil, temos certa dificuldade para separar o que realmente funciona do que não faz diferença.

Num artigo seminal publicado pela "PLoS Medicine" em 2005, John Ioannidis sustenta que as conclusões da maioria dos artigos médicos publicados nos melhores periódicos estão erradas. É um texto bem técnico, que abusa da matemática para explicar que, devido a uma combinação de características da psique humana com a própria natureza do raciocínio estatístico (inferência bayesiana), a maioria dos estudos reflete mais os vieses dos pesquisadores do que propriedades reais do fenômeno analisado. Não importa o que o cientista queira "provar", com a força dos falsos positivos e um mínimo de lapidação estatística, ele terá sucesso.

Aqui, o paciente prudente deveria até mesmo desconfiar do médico total preconizado pelo CFM. Quanto mais ele lê e se mantém atualizado, mais conclusões falsas ele carrega em sua mente. Mas nem tudo está perdido. Apesar de os "papers" não terem o poder que lhes atribuímos, ainda resta uma hierarquia que nos permite tentar salvar a medicina baseada em evidências. Estudos randomizados e com muitos pacientes tendem a ser melhores do que os que se valem de menos cobaias, os quais, por sua vez, são superiores a pesquisas feitas com poucos controles estatísticos. Segundo o próprio Ioannidis, num outro artigo publicado na prestigiosa "Jama", algo entre 1/3 e metade dos trabalhos tidos como de melhor qualidade apresenta conclusões erradas ou francamente exageradas.

A lição a tirar disso tudo é que o trabalho do médico é bem mais caótico do que se pensa. Ele precisa lidar com as complexidades irredutíveis das vidas dos muitos pacientes que atende e o faz baseado numa ciência ainda incerta e titubeante. Nenhum processo de certificação, muito menos o sistema hoje adotado no Brasil, é capaz de garantir que ele esteja preparado para exercer a função, seja no plano intelectual, seja no das atitudes.

Não obstante, a medicina descobriu ao longo do último século alguns truques que realmente funcionam para salvar vidas e eles não precisam necessariamente de um médico para ser aplicados. São coisas como lavar as mãos antes de fazer a mamadeira do bebê, não construir a fossa ao lado do poço, aplicar as vacinas certas, distinguir uma tosse boba de uma pneumonia com derrame bilateral e receitar um antibiótico, identificar malformações cardíacas e mandar o paciente para um grande centro.

É verdade que a boa medicina precisa de mais do que um médico com um estetoscópio no pescoço, mas também é verdade que, em muitas regiões do Brasil, não estamos conseguindo nem sequer providenciar isso. E não é realista esperar que uma estrutura decente brote na Amazônia e outras áreas periféricas do país da noite para o dia. Dado que mesmo um profissional de formação limitada e sem acesso a grandes recursos é capaz de levar as medidas salvadoras e os truques aonde eles ainda não chegaram, tudo recomenda que o governo envide esforços nesse sentido.

Há muitas e várias circunstâncias em que meio médico é melhor do que nenhum. Se os doutores brasileiros não estão dispostos a ir para os rincões, não há como forçá-los. O Brasil, felizmente, não é Cuba. Mas é difícil sustentar que o governo não possa experimentar um ou outro paliativo. A rigor, nem precisaríamos dos cubanos para tentar melhorar as coisas. Poderíamos mandar enfermeiros para esses lugares. Desde que pudessem receitar antibióticos e vermífugos e traçar diagnósticos, já fariam diferença. É claro que, neste caso, os conselhos médicos estariam falando no perigo que é deixar enfermeiros prescreverem drogas e diagnosticarem.


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