Folha de S. Paulo


Quantas divisões tem o papa?

A frase do título, sarcástica, é de Josef Stálin, e, substituindo-se "papa" por qualquer outro nome, tem sido usada para descrever a situação de autoridades que, embora ostentem cargos vistosos, não detêm muito poder de fato.

Penso que a oração cai como uma luva para... o papa. Durante muito tempo, estive entre aqueles que criticavam duramente a Igreja Católica, por opor-se às campanhas de prevenção da Aids que propagandeiam o uso de preservativos e por promover uma moral conservadora que, a meu ver, apenas contribui para tornar o mundo um lugar menos feliz.

Continuo defendendo a camisinha e atitudes liberais no comportamento, mas já não ataco com tanta ênfase as posições da Santa Sé, pois estou cada vez mais convencido de que sua influência é menor do que se imagina. Abordei essa questão na coluna que escrevi para a edição impressa de terça-feira da Folha e hoje a desenvolvo sem as limitações de espaço.

Não estou evidentemente afirmando que o papa e a hierarquia católica não tenham nenhuma relevância. Eles representam uma tradição de 2.000 anos com ramificações por toda a sociedade. Dialogam com periodicidade semanal com os fiéis mais assíduos e seria uma grande surpresa sociológica se essa presença não deixasse nenhum tipo de marca.

Meu ponto é que, quando saímos do reino das aparências e penetramos os mistérios do "éthos" humano, as coisas ficam mais complicadas: as evidências empíricas disponíveis são fortemente sugestivas de que, hoje, muito do que o papa diz em matéria de sexualidade e comportamento entra por um ouvido dos católicos brasileiros e sai pelo outro. Vamos a esses dados.

Pesquisa Datafolha de 2007 mostrou que, embora a igreja condene com veemência o uso da camisinha, 94% dos católicos brasileiros o defendiam, percentual idêntico ao da população geral.

Em relação ao divórcio, que tampouco é aceito pelo Vaticano, os católicos estavam até a esquerda do conjunto dos brasileiros e dos evangélicos. A proporção dos que se diziam favoráveis ao instituto era de 74%, 71% e 59%, respectivamente. É curioso que a pregação do sumo pontífice encontre mais guarida entre os evangélicos do que entre os católicos. (Isso faz pensar se é tão despropositada assim a ideia de promover uma guinada ultraconservadora. O nicho dos religiosos realmente militantes, que poderiam dar novo vigor ao catolicismo, tende a ser bem reacionário).

Em relação à pena de morte, que hoje é criticada por Roma, temos uma inversão, já que 59% dos católicos a apoiavam, contra 55% da população geral e apenas 44% dos evangélicos pentecostais e 36% dos não pentecostais.

Os católicos também estavam mais próximos do brasileiro médio do que da Santa Sé em várias outras questões, como aborto, eutanásia, casamento gay e adoção de crianças por homossexuais, embora, nestes casos, o fosso entre a posição oficial da igreja e a "vox populi" já não fosse tão profundo.

Algumas pessoas me escreveram ontem e anteontem para dizer que esses números precisavam ser relativizados, já quem nem todos os que se declaram católicos para o pesquisador o são de fato. Especialmente no Brasil, existiriam muitos católicos de censo, mas que não frequentam a missa nem vivem de verdade a religião.

Bem, não vejo ninguém se queixando desses tais católicos de censo na hora de afirmar de boca cheia que o papa lidera 1,2 bilhão de terráqueos, mas admito que a observação faz sentido. Examinemos, então, o que acontece com os religiosos mais combativos.

Em 1997, o Datafolha fez uma outra sondagem, na qual entrevistou apenas fiéis que entravam ou saíam da missa e os resultados não foram muito diferentes. Destes, 90% defendiam a camisinha como método contraceptivo e 96% para evitar a Aids. É verdade que havia uma correlação negativa entre o apoio ao preservativo e a assiduidade, mas, mesmo entre os que frequentavam a missa mais de uma vez por semana, 80% o defendiam para resguardar-se da gravidez e 87% para driblar a moléstia infecciosa. Vale ressaltar que estamos falando de uma consulta feita 16 anos atrás.

Alguém poderia alegar que o pesquisador faz a diferença. O incrível ímpeto humano por ser aceito, faz com que as pessoas respondam aquilo que imaginam que seu interlocutor, isto é, o funcionário do Datafolha, quer ouvir e não o que realmente pensam. É essa distorção que estaria afetando os resultados, fazendo com que os católicos não pareçam tão católicos assim. Hipótese interessante.

Evidentemente, não temos como conferir a utilização de camisinhas, seja por fiéis ou infiéis, mas podemos escolher uma outra atividade que deixe marcas mais públicas. E, se formos aos dados do registro civil, vamos verificar que católicos não apenas defendem o divórcio como o praticam. Em 2006, a proporção de católicas entre 15 e 49 anos que se encontravam divorciadas, separadas ou desquitadas era de 8,5%, praticamente a mesma da população geral, que era de 8,8%.

Minha conclusão é a de que, em matéria de sexo e comportamento, o papa só é obedecido se disser aquilo que os fiéis querem ouvir. Se ele professar teses com as quais as pessoas não concordam, será solenemente ignorado. E é claro que, se o efeito sobre os católicos já é pequeno, tende a ser ainda menor sobre o restante da população. Assim, não há problema algum em os padres pregarem contra a camisinha, se o Ministério da Saúde ignorá-los e seguir fazendo as campanhas, como tem sido a regra nos últimos 20 anos.

Esses achados são consistentes com uma série de estudos que mostram que o vínculo entre religião e moralidade é muito menor do que se apregoa. Embora crentes gostem de citar Dostoiévski e, afirmando que, sem Deus, tudo é permitido, proclamem que a religião é a fonte da ética, a ciência pinta um quadro ligeiramente diferente.

Até por razões cronológicas, a moralidade precisa ser anterior às religiões organizadas, ou os bandos de humanos não teriam sobrevivido para originar os padres, pastores, rabinos e imãs que hoje, numa total confusão entre causas e efeitos, afirmam que o comportamento ético das pessoas depende de suas respectivas igrejas.

Num trabalho fresquinho, que acaba de ser publicado em "Secularism and Nonreligion", Justin Didyoung, Eric Charles e Nicholas J. Rowland compararam a capacidade de fazer escolhas morais de teístas e não teístas e concluíram que não há diferenças relevantes entre os dois grupos. Ali eles também oferecem uma pequena revisão dos estudos na área.

Meu experimento favorito nessa seara, entretanto, é um clássico de 1973, em que os psicólogos John Darley e Daniel Batson recrutaram seminaristas e os dividiram em dois grupos. Metade dos jovens teria de preparar-se para apresentar a história bíblica do bom samaritano a alunos numa sala no prédio ao lado. A outra metade teria de falar sobre oportunidades de emprego. Cada um dos grupos foi por sua vez subdivido em três subgrupos. O primeiro dispunha de bastante tempo até do compromisso, o segundo estava em cima da hora e o terceiro estava decididamente com pressa.

Quando se dirigiam para a sala, foram abordados por um comparsa dos psicólogos que se passava por alguém que precisava desesperadamente de ajuda. Entre os que já estavam atrasados, 90% ignoraram os pedidos de ajuda, mesmo sendo seminaristas e estando com a parábola do bom samaritano na cabeça.

Os jovens religiosos que tinham tempo de sobra foram um pouco mais generosos: 63% ajudaram, o que também implica que 37% não o fizeram.

Poderíamos, numa leitura moralizante, concluir que a hipocrisia é um patrimônio comum da humanidade, do qual religiosos não estão excluídos. Mas, como desconfio de hermenêuticas edificantes, parece-me mais sábio afirmar apenas que a forma como tratamos o próximo depende mais de fatores situacionais do que de disposições internas e sermões.

No final das contas, é uma boa notícia a de que a influência do papa em questões de comportamento é declinante. Pelo menos aqui no Ocidente vivemos tempos em que as pessoas são cada vez mais livres para decidir se vão ou não seguir uma religião e até mesmo para escolher os pontos da doutrina que vão aceitar. Os católicos de verdade têm horror a esse supermercado da fé, no qual cada um monta seu próprio "blend" de dogmas e tradições, mas, do ponto de vista das liberdades públicas, que é o que me interessa, não poderia haver arranjo mais feliz: o religioso pode continuar religioso, e os que não o são já não vão mais para a fogueira por não agir conforme os cânones do Vaticano.


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