Folha de S. Paulo


Meu amor por ela

Fecha os olhos, imagina, entra no espaço. Rabisca, redesenha. Aumenta o som, dança um pouco, volta pro computador. Teste 1. Teste 2. Teste 3. Apaga tudo e começa de novo. Desenha mais. Não para, não para, não para não. Maquete 1, 2, 3... 478. Melhora a luz, simula os materiais, renderiza mais vistas. Começa tudo de novo. Muito café. Mais música.

Time unido com a corda no pescoço. Amostras de materiais e muitos croquis espalhados sobre a mesa. Uma cerveja antes do almoço é muito bom pra ficar pensando melhor. Prepara a melhor apresentação da vida. Ensaia o discurso. Foca no conceito. Não pode faltar nada. Prazo estourando. Seguimos o briefing a risca?

Camisa passada, perfume, sorrisão branco, apresenta pro cliente. Acredita e se joga. Orça, precifica, chora, testa tudo de novo, muda os materiais, orçamento estourou. Desenha pelo resto da sua vida. Detalha o rodapé, a espessura da rebimboca da parafuseta, o encontro da interface do micro detalhe da superfície da cerâmica. Linha, diâmetro, metragem quadrada, sonhando com o Autocad todas as noite. Pau no arquivo: perdeu tudo?

Acordei, pesadelo. Faz back up agora. Volta a dormir. Obra pulsando na veia. Quebra tudo, frio na barriga. Pedreiro, tijolo, massa acrílica, zum-zummm. Fura, prega, estoura, refaz. Como assim calculou errado? Adapta, improvisa, refaz. Parede não tem 90 graus? #paredenaotem90graus #jamais.

Colunas erguidas, fiação elétrica, aprovação do bombeiro, cálculo estrutural, enche de concreto, vibra o concreto. Tá linda demais essa maçaroca no chão. Fotografa e posta no Insta assim meio com essa sombra, bem artista. 50 likes, 200 likes.

Emassa, instala porcelanato, teste de cores. Sonha com a cor, acorda gritando com a coisa colorida te devorando. Cliente puto. Empreiteiro puto. Estagiário puto. Limpa, piso estragado, pia entupida, estoura a parede, quebrou o espelho. Culpa do marceneiro, que culpa o vidraceiro, que culpa o instalador de cortina, que culpa minha mãe.

Cheiro de coisa nova. Cliente feliz. Esse ângulo, essa entrada de luz, essas formas. Ah, ópera no ar! Danço sem parar e gargalho. Arquitetura: como eu te amo!


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