Folha de S. Paulo


Crise de hegemonia

Eraldo Peres/Associated Press
Brazil's Senate leader Renan Calheiros attends a meeting with trade unionists in the Federal Senate, in Brasilia, Brazil, Wednesday, Dec. 7, 2016. Brazil's top court is set to decide whether Calheiros will keep his post amid trial on corruption charges. On Monday, Justice Marco Aurelio Mello ruled that the Senate president should be removed from the leadership role while he stands trial on corruption charges. Calheiros refused to recognize the decision, raising the specter of a constitutional crisis. (AP Photo/Eraldo Peres) ORG XMIT: ERA108
Renan Calheiros, presidente do Senado

"Há décadas em que nada acontece e há semanas em que décadas acontecem". Essa frase de Lênin ilustra bem a aceleração do tempo político no Brasil. O agravamento da situação econômica e o golpe institucional contra Dilma Rousseff abriram um período de instabilidade, que começa a traduzir-se em crise de hegemonia.

Os últimos dias trouxeram acontecimentos inimagináveis há tempos atrás. O ministro Marco Aurélio Mello, do STF (Supremo Tribunal Federal), defere o pedido de liminar afastando Renan Calheiros da presidência do Senado. Renan insurge-se, desacata a decisão e permanece no cargo. Comenta-se nos bastidores que foi aconselhado por outro ministro da corte, quiçá Gilmar Mendes, que veio a público sugerir o impeachment do colega Marco Aurélio. Crise entre os poderes e crise interna dos poderes.

Não menos expressivo, embora ausente dos noticiários, um dia antes um grupo de soldados da tropa de choque da Polícia Militar carioca abandonou o posto e juntou-se às milhares de pessoas que protestavam contra o pacote grego do governador Luiz Fernando Pezão (PMDB). Pacote que atinge, inclusive, os policiais. Não foi a primeira vez, já havia ocorrido algo semelhante nas semanas anteriores.

Ao mesmo tempo fortalecem-se as especulações na elite econômica e na mídia de um "golpe dentro do golpe" para substituir Michel Temer por um nome mais limpinho e capaz. Temem, sobretudo, que os potenciais efeitos da delação da Odebrecht ou de uma eventual delação de Cunha tornem o governo incapaz de conduzir a agenda de austeridade e retirada de direitos sociais. Temer precisa mostrar serviço e rápido.

O que une esses três episódios é a crise de hegemonia. A briga aberta entre poderes, a deserção de tropas, ainda que residual, e o abandono pelos privilegiados de um governo que lhes pertence são sinais claros de que os de cima estão perdendo a capacidade de comandar.

A reação, porém, veio a galope. O senador Romero Jucá (PMDB-RR) já havia cantado a bola, meses antes, no gravador de Sérgio Machado : "tem que construir um pacto nacional, com o Supremo, com tudo". Falava da Lava Jato, mas o pacto em questão é mais amplo, de sobrevivência do regime e implantação da agenda defendida pelos de cima.

Nesta quarta (7) entrou em marcha abertamente o "pacto nacional" previsto por Jucá, envolvendo articulações pouco republicanas entre os três Poderes da República. Temer ajustou com o Supremo a salvação de Renan para manter a agenda, em especial a votação da PEC 55 na próxima semana. Em troca, Renan provavelmente não pautará, até o fim de sua gestão, o projeto de abuso de autoridade, que incomoda parte dos ministros da corte.

Para completar, o acordo teve o apoio da oposição que o governo gosta, representada pelo senador petista Jorge Viana, e o silêncio complacente do PT, com honrosas exceções, como a do senador Lindbergh Farias. É verdade que o Supremo sai chamuscado do processo. Na prática acovardou-se ante um senador que ignorou deliberadamente uma decisão judicial. O preço do pacto, neste caso, foi atirar Marco Aurélio aos cães.

Para tentar selar a recomposição hegemônica, Temer alterou ainda a draconiana proposta da reforma da Previdência, excluindo os militares. É um escárnio a olho nu, já que se há alguma "distorção" no sistema previdenciário é a dos militares. Sua contribuição é de 7,5% do salário bruto contra 11% dos civis, todos se aposentam pelo salário final e, mesmo representando apenas 30% dos servidores, geram um gasto maior que o dos civis. Mas Temer sabe que precisará deles, nestes tempos, para garantir a "ordem pública".

Conseguiram com isso diminuir a temperatura da crise, mas seria ilusão crer que esse pacto encerra o problema. Até porque, ele deixa de fora a maioria do povo brasileiro. Aliás, é um arranjo de salvação das instituições contra a maioria, alicerçado numa agenda de espoliação aos direitos sociais.

Os de baixo –excluídos do pacto– estarão cada vez mais na cena, levados às ruas pela falência em série dos Estados, o colapso nos serviços públicos e o aumento do desemprego. A crise de hegemonia do regime político brasileiro está apenas começando.


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