Folha de S. Paulo


Salvo-conduto pra matar

Ricardo Moraes/Reuters
ATTENTION EDITORS - VISUAL COVERAGE OF SCENES OF DEATH AND INJURY Residents react near bodies of whom police say are drug traffickers, during a police operation in the Cidade de Deus favela, Rio de Janeiro, Brazil November 20, 2016. REUTERS / Ricardo MoraesTEMPLATE OUT ORG XMIT: RJO201
Os corpos dos sete jovens encontrados mortos são levados para praça na Cidade de Deus, no Rio

Às vésperas do dia da Consciência Negra, o Rio de Janeiro vivenciou mais um capítulo sangrento em sua longa história de violência contra os desvalidos. Após a queda de um helicóptero na Cidade de Deus, que ocasionou a morte de quatro policiais e, segundo a Secretaria de Segurança Pública não apresentou qualquer sinal de perfuração por tiros, no mínimo sete pessoas foram mortas na comunidade. Ao que tudo indica tratou-se de retaliação de policiais contra o suposto ataque ao helicóptero.

Os corpos foram encontrados pelos familiares em uma mata, com braços e pernas decepados, de bruços e marcas de tiros e facadas. Sinais claros de execução. Em um país onde nove pessoas são mortas por policiais a cada dia e com uma cultura de genocídio contra pobres e negros, não é possível pensar em outra coisa senão vingança e execução sumária dos moradores da Cidade de Deus.

Parte da imprensa, como de hábito, tem descrito a operação policial como um "confronto" e ressaltado que as vítimas teriam antecedentes criminais. Induz-se de forma perversa a aprovação dos atos, legitimando-se aos policiais uma espécie de salvo-conduto para fazer "justiça" com as próprias mãos. Recentemente, a chacina dos cinco jovens na Grande São Paulo foi tratada com o mesmo "silêncio sorridente", uma espécie de aprovação velada ao extermínio de quem, supostamente, teria atacado policiais.

Não é de hoje o contexto de estado de exceção em que vivem os territórios de favela e periferias em todo o Brasil. Esses casos revelam um cínico paradoxo: suspende-se a ordem e o Estado de Direito em nome do próprio Estado de Direito.

A juíza estadual Angélica dos Santos Costa autorizou nesta segunda-feira (21) a polícia a fazer buscas e apreensões coletivas na Cidade de Deus. "Em tempos excepcionais, medidas também excepcionais são exigidas com intuito de restabelecer a ordem pública. Desse modo, deve ser admitida", diz a ilustre magistrada, que seguramente não tem nenhum parente na Cidade de Deus e nunca nem mesmo deve ter pisado por lá. Imagine a reação dela e de seus colegas se uma revista coletiva fosse executada num condomínio de luxo habitado por juízes e desembargadores na Barra da Tijuca.

Coincidentemente ou não, ao comentar sobre a estreia de um filme nacional, a apresentadora Fátima Bernardes propôs uma enquete em seu programa matinal. Um policial ferido ou um traficante com risco de morte –quem os participantes do programa socorreriam antes. Se houvesse televisão em 20 de novembro 1695 no Brasil, talvez assistíssemos ao vivo uma enquete sobre a execução de Zumbi dos Palmares, premiada com 50 mil réis por Dom Pedro II.

Quando a barbárie é praticada por quem deveria resguardar a lei, quando é feita sob os aplausos da mídia e a bênção do Judiciário, resta saber de que "Estado de Direito" estão falando. Não é de se duvidar que, em breve, tenhamos juízes chancelando os que amarram suspeitos em postes, assim como tivemos recentemente um juiz autorizando técnicas de tortura psicológica contra estudantes que ocuparam uma escola.

Os corpos achados em Mogi das Cruzes e o massacre atroz na Cidade de Deus estão aí para nos lembrar que nas periferias, contra a juventude pobre e negra, o Estado de exceção sempre foi a regra.


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