Folha de S. Paulo


O impeachment, Temer e Dunga

A abertura do tão esperado impeachment não teve o prometido glamour. Iniciado por um presidente da Câmara sem moral e em meio a chantagens públicas, o processo nasce com ares de farsa. Nem todo o circo lacerdista montado pelos tucanos, por parte expressiva do PMDB e da mídia, tem conseguido anular esta crise de legitimidade.

Qual a condição de Eduardo Cunha para atribuir a alguém crime de responsabilidade? Ele, com contas na Suíça, fortes acusações criminais e que usa sem rodeios o terceiro posto da República para tentar salvar-se desesperadamente da cadeia. Qual a condição do PSDB para falar em "pedaladas fiscais", as mesmas iniciadas sistematicamente no governo de FHC?

De todo modo, mesmo com protagonistas desmoralizados, iniciou-se a novela.

Michel Temer saiu da sombra com uma carta à presidente Dilma. Afora o tom melodramático, Temer pretendia com a carta posar de vítima e, com isso, legitimar suas conspirações afastando a desagradável pecha de traidor. Se conseguirá emplacar esta narrativa, ainda não se sabe ao certo.

Se Dilma não confia em Temer, como ele afirmou, ponto para ela. É sinal de sanidade. Ao menos neste caso, ela está em sintonia com o amplo sentimento nacional.

Mas Temer e Cunha à parte, é preciso dizer que o governo petista colhe o que plantou. As posições do PMDB, suas intrigas parlamentares e traições nunca foram segredo. Desde a instauração da Nova República, o PMDB é leal unicamente ao poder e fiel apenas ao objetivo de ampliá-lo para si. Mesmo assim, a opção petista desde 2003 foi não confrontar um modelo de governabilidade onde a eminência parda peemedebista é soberana.

O governo colhe também o que plantou no que se refere à perda de apoio social. A dissolução da base parlamentar de Dilma em 2015 foi alavancada pelo declínio brutal da popularidade do governo. Declínio que, por sua vez, foi resposta à aplicação de um ajuste fiscal desastroso e com fortes efeitos antipopulares, após ter dito que faria o contrário nas eleições.

Mas, além de uma política errada, ela deu errado.

O governo passou o ano dizendo que o ajuste fiscal era necessário para evitar a perda do grau de investimento e um consequente ataque especulativo. Fez o ajuste e, mesmo assim, perdeu o grau de investimento.

O governo passou o ano dizendo que ampliar o espaço do PMDB e de outros partidos fisiológicos nos ministérios era necessário para evitar a abertura do impeachment. Deu os ministérios e, mesmo assim, abriu-se o impeachment.

Recuos foram sucedendo-se um ao outro, levando o governo à impotência, não sem antes torná-lo indefensável para a própria base que o elegeu. Dilma rifou o apoio popular em nome do apoio da banca e da direita. Acabou por ficar sem nenhum dos três.

Assim chegamos a este impasse.

Mas, como já observou Vladimir Safatle, uma especialidade brasileira diante de impasses é "chamar o Dunga". Em suas palavras: "Diante do clamor por mudanças e pelo novo, precisamos ter coragem de inovar. Por isto, apresentamos o novo técnico da seleção... Dunga". Depois do 7 a 1, chamaram o Dunga. Agora, depois da recessão, querem chamar o Temer.

Michel Temer, além de escritor de cartas piegas, é representante de um programa de regressão social para o país. Teve recentemente a coragem de expô-lo com o nome de "Ponte para o futuro" (mais adequado seria para o passado). Dentre suas propostas está o fim dos gastos obrigatórios com saúde e educação, a redução de direitos trabalhistas e privatização de tudo o que ainda seja público.

O fundo do poço sempre é mais embaixo. Temer na presidência seria a aplicação de contrarreformas e regredir para aquém da Constituição de 1988. Seria, sem dúvida, o aprofundamento da recessão e do ataque aos direitos sociais. É mais fácil ganhar a Copa com Dunga do que sair da crise com Temer.

Por isso, além da desmoralização de Cunha e do ridículo pretexto das "pedaladas", um impeachment de Dilma seria andar para trás. Quem quer que esteja comprometido com uma saída popular para a crise e para o Brasil deve rechaçá-lo sem titubear.

Ser contra este impeachment não significa defender o governo Dilma e as políticas que tem aplicado. E nem deve significar dar um cheque em branco à presidente. O pacto conservador encampado pelos governos petistas já exibe, há algum tempo, claros sinais de esgotamento.

Construir uma alternativa, baseada num novo ciclo de mobilizações, é o grande desafio para as forças vivas e populares da sociedade brasileira. O fortalecimento deste caminho passa também por barrar os retrocessos.


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