Folha de S. Paulo


Falhou o plano perfeito

Tudo foi planejado e articulado meticulosamente. O plano de regulamentar o financiamento empresarial das campanhas eleitorais, que envolveu a cúpula do Legislativo, o vice-presidente da República e um ministro do STF, parecia perfeito. Mas foi derrotado pelo plenário da Câmara na madrugada desta quarta-feira (27).

A tabelinha entre Eduardo Cunha e Gilmar Mendes começou a se consolidar quando a Adin 4650 da OAB –que argumenta pela inconstitucionalidade do financiamento empresarial de campanha– obteve maioria de 6 votos a 1 no Supremo. No mesmo dia, 2 de abril de 2014, o ministro Gilmar Mendes pediu vista do processo.

Escandalosamente, o pedido de vista se prolongou por mais de um ano, até hoje. Gilmar permanece sentado confortavelmente em cima da ação, que já tem maioria assegurada na corte. Mas mesmo com a empáfia e o autoritarismo que lhe são próprios, o ministro não se exporia tanto sem um plano definido.

O plano foi arquitetado junto ao comando do PMDB, para quem a manutenção do financiamento empresarial é questão de vida ou morte. A Câmara retomaria a PEC 352/13 (PEC Vaccarezza/Cunha, também apelidada de PEC da Corrupção), que introduz na Constituição a legalidade das "doações" empresariais e, com sua aprovação, tornaria sem efeito a decisão do Supremo.

Para tanto bastava que Gilmar sentasse em cima, ou "matasse no peito" (na linguagem de outro ministro do STF) até que a Câmara conseguisse aprovar a matéria. A eleição de Eduardo Cunha para a presidência em fevereiro coroou o plano com bom agouro. Cunha anunciou que o tema seria prioridade.

Malandramente, o novo presidente se valeu do anseio popular por mudanças no sistema político e anunciou um pacote de medidas com o nome de "reforma política". Na verdade, costurou uma contrarreforma política, que agravaria ainda mais os vícios do atual sistema, constitucionalizando a corrupção e reduzindo a já esquálida participação popular nas decisões.

Gilmar pautou a Câmara e disse que devolveria a Adin em junho. A votação portanto precisava ocorrer antes disso. Mas Cunha, com seus anos de experiência em jogadas parlamentares, deveria saber que a pressa é inimiga da perfeição. Acreditou demais na própria soberania, a ponto de humilhar seu colega de partido, o deputado Marcelo Castro, que não fez a relatoria do projeto a seu contento. O plano falhou.

A proposta do distritão foi o bode na sala, para desviar as atenções daquela que era a cereja do bolo: a aprovação do financiamento empresarial. Se passasse, ainda melhor, mas o foco não era esse. O distritão é uma excrescência, que só vigora em dois países em todo o mundo, Afeganistão e Jordânia. Na prática, significa estender o modelo de votação majoritária ao parlamento, enfraquecendo os partidos, estimulando o personalismo e dificultando a representação das minorias. Sua derrota era previsível, na medida em que muitos dos atuais deputados não se reelegeriam se o sistema fosse pelo distritão.

Imprevisível contudo era a derrota no tema do financiamento empresarial. Mostra que uma parte do Congresso não está decidida a mergulhar de cabeça no autismo político que seria regulamentar um modelo responsável pelos principais casos de corrupção do país, inclusive o da Petrobras. Vale lembrar as palavras de Paulo Roberto Costa em sua delação: "Por que uma empresa vai doar R$ 20 milhões para uma campanha, se lá na frente ela não vai querer isso de volta? Não existe almoço grátis".

O plano liderado por Gilmar, Cunha e Temer falhou. Mas não nos animemos tanto: apenas barrou-se um retrocesso. Por enquanto, as coisas ficam como estão, ou seja, ainda muito ruins. Um sistema político impermeável à participação popular e escancarado à influência do poder econômico.

O primeiro passo para avançar é Gilmar Mendes tirar a roupa de coronel mato-grossense e vestir a toga, devolvendo de uma vez por todas o processo para a conclusão de julgamento do Supremo. Ao posicionar-se como parte interessada, o ministro Gilmar puxou para si a vitória ou a derrota. Que tenha agora o senso republicano de reconhecer que essa ele perdeu.

NO TAPETÃO

Esta coluna foi escrita antes da manobra mais vergonhosa da história recente do parlamento brasileiro. Na noite desta quarta, menos de 24 horas após a rejeição do financiamento empresarial, Eduardo Cunha conseguiu levar a voto novamente a questão, desta vez obtendo maioria. O casuísmo foi proibi-la aos candidatos, mas autorizá-la aos partidos, que por sua vez repassam aos candidatos. Ele é o dono da bola: se perdeu, volta o jogo. Este é o nível da Câmara dos Deputados. Vejamos agora se o Senado chancelará esta vergonha.


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