Folha de S. Paulo


Diálogo com comentadores de internet

Há quem diga que os comentários de internet representam a consciência média da sociedade. Que o deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) é a expressão de um sentimento generalizado e que o brasileiro é preconceituoso mesmo.

Felizmente, não, ou ainda não. O senso comum tem muitos traços conservadores, mas não é fascista. Os comentadores de internet majoritariamente representam o atraso, não a média. São herdeiros virtuais dos para-choques de caminhão, embora com menos senso de humor.

*

(O comentador Mark82 entra em cena, indignado.)

Mark82: Petralha!!! Assalariado do governo!! Cadê o dinheiro da Petrobras??? A casa de vocês está caindo e ainda vem com esse discurso mofado do século 19!!! Aqui não cola... Quer nos calar, como na Venezuela e na Coreia do Norte???

(O articulista acha que é possível estabelecer um debate.)

Articulista: Não tenho essa pretensão. Mas você não acha meio estranho se esconder atrás do anonimato? O anonimato encoraja a estupidez e a inconsequência. Não precisa responder por nada do que fala. É parecido com o moleque travesso que toca campainha da casa e sai correndo. Aliás, Adorno já disse que a indústria cultural reduz as pessoas à consciência de crianças de 12 anos. As seções de comentários conseguiram regredir uns aninhos mais.

(Mark82 encontrou o que queria.)

Mark82: Ahhh!! Adorno era comunista e você também é. Quer sovietizar o Brasil! Vai para Cuba!!! Esquerdopata incoerente... É comunista, quero ver você dividir suas roupas, leva pobre para morar na sua casa então, hein?! Quem gosta de miséria é intelectual!!

(O articulista começa a se dar conta de que o debate é impossível.)

Articulista: Você está errado. Quem gosta de miséria é neoliberal. Foi o modelo econômico que se especializou em produzir miséria no mundo todo. Criou legiões de famintos e desempregados na América Latina durante os anos 1990 e está fazendo igual agora em países europeus. Tudo bem, entendo que você seja preconceituoso, mas uma curiosidade: não te incomoda em nada que 2 milhões de crianças morram de fome por ano no mundo, cinco por minuto?

(Os neurônios de Mark82 estabelecem sua conexão padrão: pobreza = não trabalho = vagabundo = bandido.)

Mark82: Quer almoço grátis??? Meu pai me ensinou a trabalhar para poder comer. É isso que dá ficar vivendo de Bolsa Miséria, quando acaba fica com fome e depois ainda quer sair de vítima!! Criança não pode trabalhar para comer, mas pode roubar e matar e não acontece nada, não é?! Essa lógica esquerdista não tem sentido nenhum! Vai trabalhar!!!

(O articulista se impacienta.)

Articulista: Bom, não vale a pena tentar lhe esclarecer que nem sempre há oportunidade de trabalho para todos. Muito menos sobre os impactos do trabalho infantil e os fracassos das experiências penais para crianças e jovens. O ódio e o preconceito tornam inútil qualquer argumento. Agora, novamente uma curiosidade: você e seus amigos passam o dia nas seções de comentários e vivem mandando os outros trabalharem... Aqui entre nós, no caso de vocês sobra tempo para isso?

(Mark82 fica vermelho e incha. Busca afastar com impropérios o pensamento desestabilizador de que ele –o caçador de vagabundos– passa horas por dia vagabundeando nas seções de comentários.)

Mark82: Olha, seu imbecil, meu avô era pobre e trabalhou a vida inteira para bancar a família. Hoje ele é empresário, mas suou pra isso!! É que no tempo dele parasitas como você eram tratados na bala, entendeu?! Por isso, que bom mesmo era na ditadura. Falam que torturou e matou? Quer saber, eu acho até que matou pouco!!! Tinha que ter exterminado essa raça de vocês pra não ficar falando absurdos. Você devia é estar na cadeia!!!

O articulista desiste. Conclui seguramente que ler comentadores de internet rebaixa qualquer debate e leva à impressão de que a consciência social seja ainda pior do que já é. Não recomendável para menores nem para maiores.


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