Folha de S. Paulo


63 dias de luta

2014 está chegando ao fim. Foi um ano de amplas mobilizações populares e de polarização do debate político. Aqueles que achavam que o ciclo aberto em junho de 2013 havia se fechado melancolicamente tiveram motivos para rever suas análises.

Foi o ano de importantes lutas contra os efeitos antipopulares da Copa do Mundo no Brasil. Foi o ano das eleições presidenciais mais acirradas desde 1989. Foi também o ano em que a direita –assanhada desde 2013– resolveu ir às ruas em defesa de suas pautas. Acabou-se definitivamente a calmaria do pacto social lulista.

Em 2014 novos personagens entraram em cena. E velhos temas, como o direito à moradia e reforma urbana, foram recolocados na pauta política. Em grande medida, isso se deveu ao ritmo intenso de lutas protagonizadas pelo MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto). No ano, foram 63 mobilizações apenas em São Paulo. Exatamente: 63.

Sem mencionar lutas importantes em outras unidades federativas como Rio de Janeiro, Distrito Federal ou Ceará. E, também, mobilizações de outros movimentos de moradia por aqui como a FLM (Frente de Luta por Moradia), CMP (Central de Movimentos Populares) e UNMP (União Nacional por Moradia Popular), bastante ativos no ano.

Este calendário intenso de lutas, somado às inúmeras ocupações de terrenos e prédios ociosos, foi capaz de dar visibilidade ao drama de milhões de trabalhadores das periferias urbanas do país. Famílias inteiras, que nos últimos anos foram sentindo o orçamento doméstico ser esganado pela valorização do aluguel, ganharam voz. E foram à luta para recuperar o que a especulação imobiliária lhes tomou.

Embora os preços, por conta da crise, estejam começando a se estabilizar, o aumento acumulado dos últimos anos é brutal. Em São Paulo, a média foi de 97% de aumento do aluguel em seis anos, segundo o índice FipeZap. Isso significou a expulsão dos mais pobres para periferias ainda mais distantes e a piora da qualidade de vida.

Em 2014, as mobilizações dos trabalhadores sem-teto deram expressão política a este problema. Dentre as 63 manifestações alternaram-se variados motes, mas não a proposta política de dar voz aos sem-voz. Variações do mesmo tema sem sair do tom, como diz a música. Algumas merecem ser relembradas.

No período que precedeu a Copa, o MTST organizou grandes manifestações em São Paulo, que chegaram a reunir até 25 mil pessoas. O foco era a denúncia do impacto das obras sobre os mais pobres, da transferência abusiva de recursos públicos às empreiteiras e da ausência de contrapartidas populares. Nesta jornada foram nove mobilizações, incluindo a ocupação da sede de grandes empreiteiras e uma marcha de milhares até o Itaquerão poucos dias antes da abertura.

Ao final o movimento obteve algumas importantes conquistas. Foi instituída uma comissão federal para prevenção de despejos forçados, que assegurou alterações pontuais no programa Minha Casa Minha Vida. Além disso, ela definiu a compra do terreno da Ocupação Copa do Povo para empreender 2.650 moradias populares.

Outra grande batalha do ano foi a aprovação do Plano Diretor de São Paulo. Foram nada menos que oito atos na Câmara Municipal, além de um acampamento de uma semana, que só se encerrou com a aprovação do plano. Este embate logrou garantir avanços significativos no texto final, como a duplicação das áreas reservadas para moradia popular e o fortalecimento de mecanismos para taxar e desapropriar terrenos ociosos usados para especulação.

Cabe ainda destacar as lutas do movimento que foram além do tema da moradia. E não foram poucas: os "rolezões" contra o racismo dos shoppings, a ocupação das operadoras de telefonia, uma grande marcha até a Sabesp contra o racionamento seletivo nas periferias, atos por saúde pública, contra a violência policial e –o mais recente– uma marcha de 20 mil pessoas "Contra a direita e por mais Direitos" cobrando reformas populares no país.

Um fenômeno notável. Em um ano, 63 mobilizações expressam o vigor de um movimento social. Mas, acima de tudo, expressam as contradições pulsantes do desenvolvimento urbano brasileiro. Não é possível mais ignorar a necessidade de uma reforma urbana profunda no país. Insistir em tratar o tema das ocupações e das lutas dos sem-teto à base de criminalização e pancada só intensificará ainda mais estas lutas.

Terminamos 2014 com uma sociedade muito mais mobilizada. Tanto entre os movimentos populares quanto nos setores médios. Tanto à direita quanto à esquerda. No campo popular e de esquerda 2014 foi marcado por ocupações, mobilizações e importantes greves.

E que greves! Os metroviários pararam São Paulo às vésperas da Copa. Os professores municipais e os docentes e funcionários das universidades paulistas fizeram longas greves. Motoristas e cobradores se mobilizaram em várias capitais. Os garis do Rio de Janeiro deram exemplo de organização em pleno Carnaval.

À direita, além das reedições da Marcha da Família na avenida Paulista, 2014 nos reservou o insólito espetáculo do surgimento da militância pelo superavit primário. O "novo ativismo", supostamente preocupado com o país e contra a corrupção, vai ao Congresso defender os interesses dos bancos. Com Lobão à frente!

Bem, para um lado ou para o outro, o fato é que o caldeirão foi destampado. Que venha 2015, e tudo indica que virá trazendo grandes embates na política e nas ruas.


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