Folha de S. Paulo


Quem tem medo do general?

Há poucas semanas, veio à luz uma carta do comandante do Exército, general Enzo Peri, proibindo as unidades militares de darem informações para a Comissão Nacional da Verdade, instituída para investigar os crimes da ditadura civil-militar brasileira.

O comandante da principal força armada do país determinou a prevaricação aos seus subordinados. Zombou da Constituição e dos poderes da República para esconder as torturas e assassinatos cometidos por sua instituição. Daí se sucedeu... nada.

A presidente da República - que foi presa e torturada pelos militares - demitiu o general? Não. Ao menos o repreendeu publicamente? Também não. O general então se retratou ou revogou a proibição? Não, não, nada disso foi feito.

O episódio demonstra cabalmente as amarras institucionais de impotência que estão colocadas para a Comissão Nacional e as demais comissões da Verdade, apesar do combativo trabalho de muitos de seus integrantes. O comandante do Exército impõe silêncio aos seus e nada acontece. E mesmo os que falaram e chegaram a confessar torturas e assassinatos à comissão viverão o resto de seus dias tranquilos e sem punição.

É inaceitável. O país precisa acertar as contas com o seu passado. A revogação da Lei da Anistia é a única alternativa à altura de enfrentar a prepotência dos generais e das casernas, que escondem a tortura de ontem para mais facilmente preservá-la nos dias de hoje.

Cada delegacia de polícia esconde um Dops. Cada beco de favela preserva um DOI-Codi. A punição das torturas passadas seria um gesto emblemático para combatê-la no presente. A pesquisadora norte-americana Kathryn Sikkink estudou 100 países que passaram pela chamada transição democrática e concluiu que, naqueles onde houve punição para os atos de violação de direitos humanos, o nível de violência policial atual é menor.

O gesto representa uma definição categórica de que a tortura é inaceitável.

A defesa da revogação da Lei da Anistia está inclusive de acordo com a legislação internacional. Em 2008, quatro dos maiores constitucionalistas brasileiros - Celso Antonio Bandeira de Mello, Fábio Konder Comparato, José Afonso da Silva e Paulo Bonavides - a defenderam a partir da tese de que crimes de lesa-humanidade são imprescritíveis.

Se alguém ainda tem dúvidas de que a tortura é um crime de lesa-humanidade que leiam o Bagulhão (carta de 1975 denunciando torturas) ou as centenas de relatos dos presos políticos da ditadura brasileira. Busquem se informar sobre o pau de arara, a cadeira do dragão, o soro da verdade, o churrasquinho, entre tantas terríveis práticas a que militantes políticos da esquerda brasileira foram submetidos naqueles anos. Os que morreram e os que viveram para nos relatar esta história merecem, no mínimo, o reconhecimento das novas gerações e a justiça do Estado brasileiro.

Cobrar punição aos militares torturadores não é pedir o impossível. Argentina, Chile e Uruguai - dentre outros países - já começaram a acertar as contas com sua história há algum tempo. Na Argentina, as leis que impediam o julgamento dos militares criminosos foram revogadas em 2001. Até o ano passado mais de 250 torturadores já estavam presos.

É preciso esconjurar os fantasmas da ditadura brasileira de uma vez por todas. Não há solução de compromisso possível com a tortura.

Lamentável que nenhum dos três candidatos mais cotados à Presidência da República tenha demonstrado esta disposição. Lamentável que o general Enzo Peri continue no comando do Exército brasileiro. As feridas continuarão abertas.

Não creiam no esquecimento. Em história, a violência mal resolvida sempre retorna de algum modo. Às vezes como clamor impetuoso por justiça, às vezes como barbárie silenciadora.


Endereço da página: