Folha de S. Paulo


Os Brics e os sem-teto

Na próxima terça-feira (15), os chefes de Estado dos Brics se reunirão em Fortaleza para a sexta cúpula do grupo que reúne as mais importantes economias emergentes do mundo.

A participação do Brasil no grupo -ao lado de China, Rússia, Índia e África do Sul- representa o reconhecimento internacional do crescimento econômico que vivenciamos na última década. Muito embora este crescimento e a própria existência dos Brics estejam hoje em xeque, o encontro tem considerável peso simbólico.

A cidade escolhida para sediá-lo também simboliza como poucas o crescimento econômico recente e suas contradições. Fortaleza tornou-se o carro-chefe do crescimento urbano nordestino, tanto demográfico quanto econômico. Na década de 2000 a 2010 sua região metropolitana foi a que mais cresceu no país, chegando a mais de 3,6 milhões de habitantes.

Do ponto de vista econômico o Ceará têm crescido a índices sucessivamente superiores à média nacional. Enquanto o Brasil cresceu 2,3% em 2013, o PIB cearense cresceu 3,4%, motivado principalmente pela expansão do setor de serviços e da construção civil na capital Fortaleza. A cidade passou a ter o maior PIB do nordeste, superando Salvador e Recife.

Fortaleza é portanto um símbolo do crescimento econômico que colocou o Brasil entre os Brics. Mas também é símbolo de suas contradições. Já passou da hora de entendermos que o crescimento econômico não é um bem em si, isento de efeitos negativos e antipopulares.

Nunca é demais lembrar que o período de maior crescimento do Brasil em sua história recente -o chamado "milagre econômico", conduzido pela ditadura militar- foi igualmente o período de maior concentração de renda no país.

Numa economia de livre mercado como a nossa, o crescimento significa fortalecimento do capital e dos interesses privados. Por isso, para garantir um mínimo de equilíbrio entre as forças sociais nas conjunturas de crescimento é preciso intervenções estatais que resguardem os direitos dos mais pobres. Isso não ocorreu durante a ditadura e ocorreu muito limitadamente nos governos petistas.

Resultado: o avanço econômico veio novamente acompanhado de perversos efeitos colaterais. Nos centros urbanos destacou-se a especulação imobiliária, com sua fórmula de valorização e exclusão. Ao mesmo tempo que explodiram os investimentos, o preço da terra e dos aluguéis passaram por uma hipervalorização, expulsando os mais pobres para regiões periféricas e desprovidas de infraestrutura e serviços públicos.

Fortaleza, sede da cúpula dos Brics e exemplo do crescimento recente, representa de modo emblemático este processo. Nos últimos quatro anos a valorização imobiliária na capital cearense foi de 72% ante 28% de inflação, segundo o Índice Fipe/Zap. O déficit habitacional da cidade chegou a 125 mil famílias em 2012, só perdendo para as três gigantes do Sudeste (São Paulo, Rio e Belo Horizonte). Segundo o Ipea, o crescimento deste déficit na região metropolitana de Fortaleza entre 2007 e 2012 foi o segundo maior do país, ficando atrás apenas de Brasília.

Divulgação
Maquete de divulgação do Centro de Eventos do Ceará, que sediará o encontro dos Brics, na terça-feira (15)
Maquete de divulgação do Centro de Eventos do Ceará, que sediará o encontro dos Brics, na terça-feira (15)

Dezenas de milhares de novos sem-teto surgiram na nova "capital do Nordeste". A razão é a mesma da que temos visto em São Paulo e outras grandes metrópoles: o aumento descontrolado e abusivo no valor dos aluguéis urbanos. Junto a isso, a especulação aprofundou ainda a velha prática da segregação urbana. Milhares de pessoas têm sido removidas de comunidades em áreas mais valorizadas, próximas à praia, para conjuntos habitacionais periféricos.

Por isso não é de se estranhar que, às vésperas do encontro dos Brics, Fortaleza tenha se tornado palco da mais recente ocupação urbana do país. Centenas de trabalhadores sem-teto ocuparam na última semana um enorme terreno no bairro da Paupina, zona sul da cidade. Abandonado há anos e utilizado para especulação imobiliária, o terreno tornou-se mais um alvo do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) na luta por moradia no país.

A ocupação -batizada de "Copa do Povo", a exemplo da ocorrida em Itaquera, na zona leste de São Paulo- cresceu intensamente nos primeiros dias, expressão viva do déficit habitacional represado e do fracasso das políticas habitacionais em solucioná-lo.

No mesmo dia da ocupação da Paupina, poucas horas antes e há alguns quilômetros dali, o Brasil vencia a Colômbia no estádio do Castelão. Daqui há alguns dias, no suntuoso Centro de Eventos do Ceará, a cúpula dos Brics discutirá os rumos econômicos dos países do grupo.

Entre a seleção e os chefes de Estado, novos personagens entraram na cena. Os trabalhadores sem teto clamam pela sua fatia no bolo do crescimento nacional.

Divulgação/MTST
Assembleia de sem-tetos em ocupação do MTST de Fortaleza, no Ceará
Assembleia de sem-tetos em ocupação do MTST de Fortaleza, no Ceará

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