Folha de S. Paulo


A batalha do Plano Diretor

Depois de mais de nove meses do envio do projeto o Plano Diretor Estratégico (PDE) de São Paulo foi finalmente aprovado na última segunda-feira (30). O Plano estabelece diretrizes para o desenvolvimento da cidade nos próximos 16 anos e trouxe importantes avanços em relação ao anterior, de 2002.

A tentativa de estabelecer algum freio para o predomínio do mercado imobiliário sobre o crescimento da cidade se concretizou na definição dos Eixos Estruturantes, que são regiões onde haverá maior estímulo ao adensamento em função da oferta de transporte público. É a busca de um respiro para uma cidade que já colapsou por conta do incentivo ao transporte individual e pela lógica da periferização, que afasta cada vez mais os trabalhadores de seu local de trabalho.

O desafio da moradia popular também foi enfrentado. E que desafio! São Paulo tem um déficit habitacional de mais de 700 mil famílias; cerca de 1,3 milhão de pessoas vivendo em favelas; e outras 2,5 milhões que moram em loteamentos irregulares. Se somarmos, quase metade da população paulistana é afetada pelo problema da moradia precária ou irregular.

O novo PDE praticamente duplicou a quantidade de áreas destinadas à moradia popular: as ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social) passaram de 17 km² para 33 km². Esta reserva de área representa um importante passo, principalmente se considerarmos que o apetite do mercado tornou a falta ou valor excessivo do solo o maior problema para construção de moradias populares na cidade.

Além disso, a pressão popular deu condições para que o Plano definisse que 60% das habitações construídas nas ZEIS têm que ser destinadas a famílias com renda mensal inferior a três salários mínimos. Tendo em conta que mais de 70% do déficit habitacional brasileiro refere-se a esta faixa percebemos o quão importante foi esta limitação para enfrentar de fato o problema de moradia em São Paulo.

Houve ainda outros avanços. O fortalecimento das regras de aplicação da função social da propriedade para combater áreas utilizadas para especulação imobiliária, com mecanismos como IPTU progressivo e desapropriação sanção, foi um deles. Outro foi o estabelecimento de uma política municipal de prevenção de despejos forçados, seguindo passos já indicados - também sob pressão - pelos governos federal e estadual.

De todos os avanços talvez o mais inovador seja a Cota de Solidariedade. Mas ela também expressa os limites do PDE. A proposta original da Cota era - ao estabelecer uma doação de 10% da área de empreendimentos com mais de 20 mil m² para habitação popular - um enfrentamento à segregação urbana.

Os condomínios de alto padrão teriam que aprender a conviver com "gente diferenciada" ao seu lado, muro a muro. Mas aí a pressão do mercado entrou em campo e a Cota foi relativizada. Na forma final, o empreendedor não precisa mais repassar parte da área, podendo fazer a contrapartida em dinheiro. E se optar por terra não precisa ser mais na mesma área, podendo ser na Macrozona. Prevaleceu neste caso a lógica da segregação.

Muito se falou das pressões para a aprovação do Plano. É verdade, os avanços obtidos não teriam sido possíveis se não fosse a intensa pressão popular. Mas esta foi apenas a pressão mais visível. Foram inúmeras mobilizações dos movimentos e uma participação ampla nas audiências públicas de debate do PDE. O MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) permaneceu acampado em frente à Câmara durante sete dias até a aprovação do Plano.

Nem sempre porém a maior pressão é a mais visível. Em sua discussão o Plano foi objeto de uma pressão muito mais violenta por parte dos lobistas do mercado imobiliário. A pressão silenciosa de um engravatado pode ter mais efeito que o barulho dos descamisados. A pressão de bastidores dos empresários foi pesada e também incidiu no resultado final do Plano, como vimos no caso da Cota de Solidariedade. Ou alguém se atreveria a subestimar um setor que investiu que investiu mais de R$22 milhões em doação de campanha para os atuais vereadores de São Paulo?

O PDE de 2014, apesar dos expressivos avanços, não reverte a lógica excludente de desenvolvimento da cidade. Nas atuais relações de força e com o atual sistema político nenhum Plano poderia fazê-lo. Enquanto as empreiteiras controlarem valiosos espaços no Estado através do financiamento privado de campanhas eleitorais não conseguiremos mudanças estruturais no sentido de uma verdadeira Reforma Urbana.

E mais. Estaremos sempre sujeitos a que mesmo os avanços pontuais não sejam implementados. O Plano de 2002 foi praticamente engavetado pelas gestões municipais anteriores. Seus pontos mais avançados foram solenemente ignorados. Por isso, passada a batalha da aprovação do PDE, teremos agora a batalha por sua implementação efetiva.


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