Folha de S. Paulo


Cuba, curva de suspiro e barro

Visitei Cuba, com amigos, na passagem de 1998 para 1999. Era o final do "período especial", em que a ilha sofreu a sua pior crise econômica, com o colapso da União Soviética e o isolamento econômico imposto pelo embargo norte-americano. Queríamos chegar a Santiago "em um carro de água negra", como no verso de García Lorca, a tempo de ver o discurso de Fidel Castro nos festejos de 40 anos da revolução.

Minha impressão foi a de que Cuba se parecia muito com o Brasil, só que com menos liberdade e riqueza, porém também com menos cinismo, e mais altivez e educação. Ainda que tenha visto sinais claros de prostituição nas ruas, e de precariedade social nos edifícios decrépitos, nunca consegui concordar com a opinião de amigos que voltaram de lá mortificados, interpretando a precariedade como uma insuportável violência.

Com altivez não me refiro apenas à campanha de orgulho nacional, como o outdoor voltado para Miami, que afirma não ter nenhum medo dos imperialistas. Refiro-me à atitude sempre afirmativa das pessoas no trato pessoal e coletivo, que não se confunde nunca com a autocomiseração. Sensação que se amplifica com o formidável uso dos espaços públicos, sempre cheios de gente disponível para o pleno "estar", e não para o consumo. Sei muito bem que isso é, em parte, um produto da escassez, mas não posso deixar de notar as vantagens que pude perceber, como turista, nesse mundo encapsulado no espaço e no tempo, como que milagrosamente apartado do capitalismo, e devotado a um desfrute sem complexos da vida presente. O que não é pouco, quando nos vemos envoltos por toda parte em um consumismo suicida e solipsista.

Viajando pelo interior do país, nos hospedamos na casa de uma senhora que, de maneira pungente, nos perguntou se era verdade que no Brasil havia crianças que dormiam nas ruas. Para seu espanto, lhe respondi que não apenas isso era verdade, mas que também se dizia entre nós que eram eles, os comunistas, que "comiam criancinhas".

No filme "Guantanamera" (1995), que narra as agruras de Cuba no auge do "período especial", há uma chuva-dilúvio no final, que metaforiza biblicamente a necessidade de um recomeço depois que as águas voltassem a baixar. Esse é o momento tão temido e tão esperado por muitos, que a morte de Fidel parece descortinar. O que será feito dessa singularíssima experiência histórica? Morte derradeira do século 20, justo no momento em que o mundo todo dá sinais claros de uma guinada à direita? Por outro lado, é preciso lembrar que o regime revolucionário cubano esteve na retaguarda de uma série de conquistas recentes, associadas ao século 21, tais como os direitos de negros, feministas, LGBTs etc.

"El pueblo lo siente, Fidel está presente", cantavam as pessoas em Santiago, à espera da chegada iminente (e quase mítica) do "comandante em chefe". Nós engrossamos o coro. E deliramos com sua verve inebriante —mistura de teatro épico e trágico—, ao mesmo tempo em que nos entristecemos ao ver que o povo comum não tinha acesso à praça, reservada a membros do partido, convidados e turistas. Saímos de lá com um sentimento paradoxal.

Sábado, quando escrevo, acordo sobressaltado com a mensagem de um amigo querido, que cita García Lorca: "Oh Cuba! Oh curva de suspiro y barro!". E, como que psicografando o grande poeta espanhol, completa: Fidel voou.


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